Bildungsroman (Guerreiro)

                                                        BILDUNGSROMAN

Reflito às vezes sobre os caminhos que percorri e a motivação que me impeliu a eles, a resposta talvez seja a de uma inquietude inerente, uma curiosidade intelectual sobre o mundo e de como nos relacionamos com ele, qual a verdade subjacente nesse estranho diálogo numa jornada de aprendizagem. Ocorreu ali um afastamento da Doxa, do saber próprio do senso comum, um ceticismo quanto à verdade apregoada buscando na episteme, a ciência como garantia da veracidade.

Sendo a leitura uma companhia desde sempre, Bertrand Russell na adolescência com sua clara análise nos campos mais diversos foram decisivas na teoria do conhecimento, na ética e em sua visão sobre a sociedade, e, principalmente na análise lógica da verdade pela objetividade na leitura das fontes primárias. Ao ingressar na faculdade sendo a cadeira de historiografia o norte da formação a mestra Antonieta de Aguiar Nunes repisava: vocês poderão ser professores de História, mas não historiadores e caso não se dediquem ao magistério e sim à pesquisa histórica (que era o meu caso) serão historiógrafos, pouquíssimos poderão almejar à esse título quando desenvolverem teorias sobre o processo histórico. Ficava claro assim que iríamos respeitar fielmente as fontes primárias ao citá-las e não interpretá-las, na contracorrente da Escola francesa des Annales então em voga. O papel do testemunho histórico nas fontes primárias na concepção dos Annales não era mais o objeto principal, uma vez que o conhecimento poderia ser conseguido de outras formas criando-se um revisionismo de acordo com as tendências dos historiógrafos que passaram a historiadores sociológicos, estruturalistas, marxistas, materialistas históricos e por aí vai.

Diante disso relembremos o papel dos primeiros historiógrafos a partir de Heródoto, o Pai da História que usou a palavra Historiae em sua acepção original: Pesquisa, por sua vez derivada etimologicamente de histor: aquele que sabe. Heródoto partiu das palavras dos Aedo, poetas na Grécia arcaica que cantavam e contava a aletheia, a verdade, não ela em si, porém a verdade vista pelos poetas. Por isso ao relatar os acontecimentos os fez a partir dos mitos interpretando os fatos com exceção das Guerras Persas que relata como espaços da memória. Tucídides que talvez faça mais jus ao título de Pai da História atuou com participante e testemunha das Guerras do Peloponeso (até certo ponto como nosso Euclides da Cunha) registrando os eventos sem julgá-los, assinalando porém que a seu ver tudo seria fruto de interesses políticos, o historiógrafo dando lugar ao  historiador.

Essa oposição entre o verdadeiro e o falso no interior do documento e é óbvio no discurso de quem o faz é a Qaestio aetherna, quid est Veritas? O que é a verdade? Nietzsche responderia que a única verdade é a verdade vivida. Assim sendo saímos do âmbito da Historiografia para a Filosofia da História, do papel do historiador diante do registro documental e de sua subjetividade, da hermenêutica do conhecimento a partir da perspectiva do historiador e recaímos na questão, existe uma verdade cognoscível e confiável a partir de um relato dito “imparcial”? E Nietzsche mais uma vez em seu “Crepúsculo dos ídolos” conta a história de um mundo verdadeiro que acaba se tornando uma fábula, a idéia de um mundo verdadeiro ser um erro. No viés da psicanálise Lacan nos diz que a verdade habita a interioridade do sujeito e quando a palavra se instaura não significa deslocar a dimensão da palavra, em sua presença não sabemos ser autêntica ou falsa, ela reside no registro do equívoco, da mentira, do erro que pode enganar a si mesmo e não necessariamente aos demais.

Tomemos como exemplo na Maçonaria Simbólica o número doze tido como base das doze tribos de Israel e de sua ligação com a Cabala; esse número é fundamentado na obra divina, o Cosmos, resultante das letras IHVH que originam doze combinações e a Sephirot (árvore da vida). Filon de Alexandria (20 a.C-50 d.C.) filósofo judeu, contudo nos afirma que jamais existiu um Jacob (ou Israel) com seus doze filhos que deram origem às doze tribos, isso sendo uma metáfora. Apoiando essa afirmação nenhum arqueólogo moderno encontrou vestígios materiais da passagem dessas doze tribos totalizando cerca de 600.000 indivíduos entre o Egito e a Palestina e sustentando essa tese a epopéia de Moisés foi criada por escribas do rei Josias de Judá (641-609 a.C.) para promover suas ambições dinásticas e ocupação de território. A “verdade histórica” da Torá, livro escrito em torno de 450 a.C. e que alicerça as três principais religiões usou elementos da tradição oral de 1000 a.C. percebendo-se então uma inverdade construída em cima de fantasia como tantos mitos, expressão humana da vontade do desejo oculta no inconsciente.

Todo nosso processo civilizatório, nossas Associações, Fraternidades, Confrarias se fundamentam no caráter unívoco da palavra onde não existe garantia, e sim a possibilidade de ocultamento da verdade. Como desfazer a ilusão dessa palavra plena que nos daria a verdade? Volto à minha formação em um colégio rotariano e à frase que nos recebia diuturnamente: Per aspera ad Astra, para os astros por caminhos ásperos, tendo consciência de que o conhecimento repousa na Ética, o caráter consolidado na normatividade da conduta e que não deve ser confundida com a lei, compelida pelo Estado como norma de ação.

Ética, algo que deve ser pensado como na Paidéia grega na voz de Demóstenes : Ética, a consciência viva da comunidade a que se dirige confere a seus juízes sobre o digno e o indigno uma força e uma indiscutível necessidade, que o mero páthos jamais teria alcançado.

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