Chiquinho preto e o colecionador de rabos secos

Chiquinho Preto ria muito, tanto ria que babava, os fios da baba escorrendo pelo queixo pontudo com rala barba. Por qualquer coisa, ria. Para ele, o mundo se mostrava alegre. O povo da cidade já se acostumara com as risadas desabridas. Achava graça até nos velórios e era severamente corrigido. Ria, ria e ria. Até quando dormia. Sonhava e ria, olhos rasos de bondade.

– Por que ri tanto, idiota? – perguntavam.

Ria mais ainda. Ninguém sabia do que ele ria. O idiota se desmanchava em gargalhadas. Ria do quê? Das pessoas, do mundo, dos bichos, dos redemoinhos frequentes no meio da rua, do vento, da própria sombra?  Ria até mesmo quando sentia dor. A baba se misturava com o riso. Uma nojeira.

De manhã, lá vinha Chiquinho Preto perambulando e rindo. No armazém, ficava ouvindo as histórias dos homens. Caçadas de onça, de queixadas, de macacos, de jiboias. Estalava os olhos como se visse cobras gigantes. Sem entender, ria. E logo começava a babar. Ficava de olhos vidrados quando alguém saboreava pão com mortadela. Os piedosos davam-lhe pedaços rasgados com as mãos. Nos bares, os malfeitores queriam forçá-lo a beber. Mas ele não bebia. Mulheres caridosas davam-lhe pratos cheios de arroz e feijão. Ria mais, agradecido, quando com ovos estalados.

Acompanhava-o uma cadela amarela. Não o largava. Estirava-se aos pés de Chiquinho e parecia rir também. Ria com o rabo e também com os dentes, feito gente. A escassa comida que conseguia dividia-a com a cadela. Se entrava na igreja, a cadela também. As pessoas más espancavam-na com chutes e pedradas e esconjuros e risos sádicos, torpes. Chiquinho saía da igreja rindo, gritando:

– Bisteca vai pro céu! Bisteca vai pro céu!

Bisteca, para se proteger, enrolava-se em suas pernas, e ambos ficavam dando volta ao redor da igreja, até o término da missa. Mais de uma vez, padre Salvino interpelara os fiéis tentando protegê-lo. Chiquinho e sua cadela eram criaturas de Deus, que preferia os mais simples em detrimento dos ricos vaidosos.

Era frequentemente objeto de gozação e tortura pelos moleques e rapazes. Puxavam-no pelas calças, imitavam-no, pregavam-lhe peças, torturavam-no, diziam-lhe palavras sujas.

– Já viu xoxota de mulher, Chiquinho?

Ele continuava rindo e babando.

– Você já tem pelos no saco? Ah, todo mundo acha que você é viado! É mesmo! Nem barba tem!

Ele ria e babava.

– A Rosa Gorducha diz que aceita dormir com você. Ela tem uma xoxota cabeluda, feito aranha. Ela vai te devorar, Chiquinho!

Ele continuava rindo e babando.

– Mostre suas mãos, Chiquinho! Vixê, estão cheias de cabelos. Quantas bronhas você está batendo por dia? Ou você gosta de homem?

O sétimo filho do meeiro Jacó, o nordestino fugitivo da seca. De sol a sol, ocupava-se do sítio de café, na gleba Humaitá, nem sabia por onde andava o filho babão. Deus o castigara quando lhe dera um filho idiota. Por dentro, roía-lhe o martírio por ter, lá em Pernambuco, esfaqueado um bêbado e tirado a vida. Sim, só podia ser castigo. Seis filhos com saúde e, por final, o idiota… Sim, era a maldição. Tinha que carregar o fardo. Havia como corrigi-lo? Espancá-lo para fazê-lo homem decente? Já o espancara por diversas vezes. Jacó nem aparecia no povoado. Sentia vergonha. Sabiam que o traste era seu filho. Não queria ser chamado de pai babão. Mandava o filho mais velho fazer as compras ou vender os cereais. Por ter tirado a vida de um bêbado, viera a provação. Teria que conviver com o filho idiota até o fim de seus dias…

– Confesse, home de Deus! Fale com o padre Salvino… Ele sempre passa na estrada com a sua carroça barulhenta – ordenava-lhe a esposa Severina, mirando-o como se ele fosse parte do demônio.

– Não confio em quem veste saia! – respondia brusco. – Olha o que ele fez com a Madalena!

– Não fale assim dele. Ela que encorpou o demônio. Ele é um santo! Que culpa ele tem se colocaram o diabo vestido de saia pra cuidar dele?

– Um santo não faz coisas do arco da velha! A alma de Madalena anda assustando toda gente noite adentro.

Jamais confessaria os seus pecados a um homem enfiado numa batina. Estava disposto à provação.

2

Três homens estavam sentados na frente do armazém defronte da farmácia de Damaso, a Farmácia do Povo. Na rua de sol escaldante, vinham Chiquinho Preto e Bisteca, sua cadela amarela, à procura de sombra. Na frente do armazém, pararam indecisos, mas como viram fregueses acotovelados no balcão de madeira ensebada, resolveram entrar. Ambos estavam sedentos e famintos. O sorriso estampado nas faces negras misturava-se com a baba ressecada.

Os três homens sentados na frente do armazém começaram a rir. No interior do armazém, na penumbra, os fregueses gastavam as horas. Rodoão já se achava bêbado. Desde cedo abancara-se ali e, de vez em quando, pedia grosseiramente mais um copo de cachaça, que bebia vorazmente. Esbanjava vaidade e ignorância. Era filho do fazendeiro Abdias, dono de uma gleba de boa aguada e imenso cafezal. Por ser rico, mostrava-se soberbo, cheio de razão e, por qualquer discórdia, estava disposto a surrar alguém de relho ou com a bainha de um facão. Rapaz ambicioso, cruel e destemido, todos os respeitavam, evitando-o, ou concordando.

Chiquinho Preto se ajuntou aos homens que ali estavam, à espera de um pedaço de pão com linguiça. Olhões arregalados, esfomeados – a cadela amarela sentada de lado, também à espera de um bocado. Mas ninguém lhe deu importância. Logo, então, a baba começou a escorrer-lhe pelo queixo pontudo.  Maneca, o proprietário, sentiu o coração amolecer e jogou um pão dormido sobre o balcão.

– Toma! E se vá! Não quero nenhum babão aqui.

Quando Chiquinho Preto, sempre rindo, estendeu a mão para pegar o pão, Rodoão desceu com toda a força a bainha do facão sobre o balcão, quase sobre os dedos de Chiquinho, que se encolheu, assustado..

– Primeiro, seu nojento, tem que beber cachaça. Depois, o pão.

Mas Chiquinho não bebia. Ficou rindo do estalo da bainha do facão sobre a madeira. Ria e babava.

– Seu idiota! Tem que beber. Maneca, traz um copo de aguardente. Se não beber, não come!

Chiquinho ria e babava. O cachorro recuara num canto e rosnava. Maneca veio socorrer-lhe:

– Deixe disso, Rodoão. É um negro desmiolado, só sabe rir. Nunca tomou cachaça. Deixe ele pegar o pão e sumir por aquela porta.

Rodoão desceu sobre o balcão a bainha de couro produzindo um estalo maior, como se fosse de um tiro.

– Não se meta, Maneca. Tem que fazer o que eu digo. Não sou nenhum moleque. Dei minha palavra. Está aqui. Pegue o copo, seu idiota!

– Ele não sabe o que faz – voltou à carga Maneca e, dirigindo-se ao Chiquinho: Vá, volte depois, eu dou outro pão.

Chiquinho saiu do armazém e começou a andar na rua empoeirada, para lá e para cá, como se rodopiasse, sempre rindo e babando, a cadela atrás, até que se cansou e ficou observando o seu dono.

– Não gosto que me contrarie, Maneca. Tenho palavra.

Embainhou o facão.

– Isso não vai ficar assim – e mirava, enraivecido, o dono do armazém, que se afastara e, precavido, agarrara um porrete de peroba que estava numa espécie de gavetão, à espera de algum contratempo.

– Ora, se quer beber, beba, mas aqui não é lugar de encrenca. Com licença, tenho que atender os fregueses.

Rodoão se aquietou. Estava carrancudo, as orelhas vermelhas, o rosto esverdinhado. Curtia o rancor, enquanto se encharcava de álcool. Haveria de vingar-se. Não era moleque. Jamais seu nome seria enlameado. Logo por quem? Um idiota.

3

Damaso saiu à porta da farmácia. O ar quente da rua bafejou seu rosto e a poeira vermelha cobriu seu guarda-pó branco. Ao sentir o bafo quente, virou a cabeça. Ouviu-se, no alpendre de sua casa, que ficava atrás do estabelecimento, um som de passos arrastados. Devia ser a empregada que esfregava, descalça, o assoalho com uma vassoura de guanxuma. Em seguida, entrou na farmácia um homem curvo, de macacão, descalço, cabeleira queimada pelo sol, opaca e imunda, com pálidos olhos coléricos, barba encaracolada curta e suja, cor de ouro encardido. Em seguida, ouviu o empregado lhe chamando, mas, antes que atendesse ao chamado, ainda mirou Chiquinho Preto dando voltas no meio da rua, enquanto a cadela o observava, sentada sobre as patas traseiras.

– Santo Deus! O que um idiota desses pensa? – murmurou e passou pelo balcão para atender o freguês que chegara.

Por trás do balcão, Damaso via Chiquinho Preto dando voltas, como um cão tentando pegar o próprio rabo, os pés produzindo na terra solta um ruído sussurrante e metódico. Movia-se como uma mula quando caminha na areia, num bamboleio arrastado, sem esforço aparente, mas embrutecido, os pés nus silvando ao esguichar a terra esfarinhada para trás, a cada nova passada. Mais uma vez, Damaso resmungou: “O que pensa esse negro idiota? Debaixo de um sol escaldante, a girar feito barata tonta…”

Os três homens sentados no banco à porta do armazém observavam Chiquinho Preto e dele faziam comentários maldosos. Juntou-se a eles Rodoão, visivelmente embriagado, sentando-se derreado. Estava nervoso, disposto a fazer algo que o compensasse. Até um idiota não lhe obedecia… Sim, um idiota ria de suas ordens. O que diriam as pessoas quando soubessem? Era um pamonha, um fracote, um galo garnisé.

O rosto enrugara-se, esverdinhado; parecia pálida máscara sob o chapéu de feltro mal equilibrado. Mirava ferozmente Chiquinho Preto rindo, resmungando, babando, e a raiva caía sobre a cadela amarela, sentada sobre as patas, numa sombra esquálida. Raça desnaturada que acompanhava bêbados e andarilhos vadios.

– Por que negros não têm rabo? Sim, como os macacos!

A voz pastosa de bêbado. Naquele dia, não comera ainda. O estômago grudara às costelas e a bílis azedara.

– Por que não nasciam com rabo?

Tinha os olhos injetados, as narinas pareciam de cera. Com dificuldade, enfiando a mão no bolso da calça, encontrou um cigarro. Esfregou-o, torceu-o e enfiou-o à boca, acendendo o fósforo no solado da bota.

– Por que já não nascem com o rabo? – voltou a dizer, comprimindo os lábios, soltando a fumaça aos poucos no ar abafado da tarde. – Por que não viro esse idiota pelo avesso como uma manga de paletó?

Resmungava. Os três homens sentados no banco sentiam o cheiro azedo da cachaça que exalava de sua boca. Não lhe davam atenção; fixavam-se na figura tétrica de Chiquinho rodopiando em círculo como um cão caçando o próprio rabo.

Na tarde, uma carroça barulhenta e sacolejante se aproximava pela estrada e entrava no povoado. Todos olharam para ver quem vinha dentro. Era um pobre sitiante que vinha efetuar compras no armazém. Rodoão desembainhou o facão e começou a amolá-lo numa pedra pontiaguda. A raiva caía sobre a cadela. Desnaturada, também idiota. Procriava como minhocas.

– Por que essa vira-lata tem rabo tão comprido? Não serve pra nada. Só atrapalha. Não sabe caçar, não sabe vigiar, não sabe ladrar. Esse rabo só serve pra espantar moscas e ficar balançando pra cá e pra lá. Negros deviam nascer com rabo comprido assim. Maldito o dia em que os macacos se puseram de pé e perderam o rabo. Alguém cortou-lhes o rabo e aí estão, emporcalhando o mundo.

Rodoão colecionava rabos secos de cachorro pendurados no varal no rancho dos arreios. Quando recebia visitas na propriedade nas tardes de domingo, após o jogo de malha ou de truco, mostrava com orgulho o varal de rabos secos de cachorros. Designava cada rabo pelo nome do dono, preciso, como se tivessem etiquetas.

– Esse é Raimundinho, que mora na gleba Marumbi. Esse outro é Mangabinha, é lá do Humaitá. Este daqui é de um mendigo andarilho. Cortei quando passou por aqui pedindo comida. Ficou assustado, nunca mais apareceu. Esse outro é do Pacová, que estava podre de bêbado e nem percebeu quando torei o rabo da cadela dele. Ele pensa até hoje que foi cortado por uma roda de carroça.

Num lance rápido, pulou sobre Bisteca e segurou-a como se segurasse um boi no meio da pastaria. Com a mão esquerda, segurou o rabo da cadela e, com a direita, levantou o facão afiado e, num lance só, cortou o rabo, da mesma forma que cortava um pequeno arbusto. Em seguida, soltou-a. Livre, a cadela disparou rua afora, até encontrar-se distante, e começou a uivar desesperada. Os uivos cortantes se faziam ouvir a quilômetro. No meio da poeira fofa da rua, começou a pular, saracoteando, sempre latindo e lambendo o coto sangrento do rabo. Rodoão ria torto, o rosto esverdinhado. Depois de limpar o facão, embainhou-o, e começou a girar o rabo cortado, espalhando gotículas de sangue quente, enquanto mirava a cadela que, ao longe, dava voltas e voltas na poeira fofa da rua.

– Se esse maldito negro tivesse rabo, eu já teria cortado – falava abertamente, fuzilando com os olhos injetados Chiquinho Preto que, sem saber direito, o que tinha acontecido, e por que a cadela uivava daquela maneira, continuava rindo e babando.

Juntara, de repente, uma pequena multidão – moleques, mulheres, homens desocupados. E falavam, e riam, e alguns se enojavam, enquanto Rodoão contava suas proezas e se vangloriava da coleção de rabos cortados que mantinha dependurada no varal no rancho dos arreios. Quem duvidasse, que chegasse até sua propriedade para espiar. E mais ainda: um rabo não era de cachorro, era de onça parda.

– Ninguém fará nada? – observou Maria Alegre, enquanto se dirigia à farmácia de Damaso. – Está com o diabo no corpo.

Chiquinho Preto, enfim, compreendera o que tinha acontecido, e saiu correndo em direção de Bisteca, tropeçando, como doido.

– Deus vai castigá, Deus vai castigá – gemia Chiquinho Preto enquanto corria na direção da cadela.

– Ninguém fará nada? – voltou a dizer Maria Alegre, consternada, mirando de forma desafiadora, o riso frouxo daquela gente.

Ninguém fez nada. Que importância tinha uma cadela sem rabo? Que importância tinha um idiota?

– Se os negros tivessem rabo… Eu já teria cortado muitos. Essa negreira não se colocaria no meio dos brancos – disse, levantando-se, ao mesmo tempo que enrolava o rabo de Bisteca num pedaço sujo de pano e guardava-o na boldrana da montaria.

Dentro do armazém, o proprietário Maneca o aguardava com o cajado de peroba. Mas Rodoão resolvera, cambaleando, os olhos injetados, galgar sua montaria, com dificuldade e voltar para casa.

4

Alma pura? Para os viventes, um abobalhado. Idiota animalesco. Que diferença tinha ele de um animal da floresta? Nem todo mundo zombava dele; havia os piedosos, os que tinham medo do Inferno. Que sentido tinha a vida para um ser nojento? Tinha quase trinta anos. A família deixara-o à parte, um saco de areia à margem. Em toda a sua vida, Chiquinho não possuía outro objeto que não pudesse usar ou levar nos bolsos rotos. Um canivete de cabo de osso gasto e uma manta de feltro emporcalhada, que ele usava para acampar na mata quando algo lhe roía dentro do peito. Não caçava, não pescava, e ninguém queria levá-lo para tais aventuras. Quando acossado, adentrava na mata e sumia por três ou quatro dias, e a família já não o procurava mais. Esperava-se que as onças ou porcos do mato o devorassem. Mas, para decepção, voltava da mata ferido, cheio de carrapatos e arranhões de unha de gato, mas vivo e rindo e babando. Tornava-se invisível, como certos macacos noturnos. Amava a mata; fazia dela o seu refúgio. Longe dos homens, os demônios. Comia grilos, frutas silvestres, besouros de pau podre esbranquiçados. Ah, os homens… Eram maus, não sabiam apreciar o mundo; estavam sempre destruindo. Chiquinho jamais haveria de ter bens. Jamais! A terra a ninguém pertencia, como a luz e o ar e as mudanças de tempo. Quem mandava no vento? Ninguém. Quem mandava nas nuvens? Quem mandava nas águas do rio? Quem mandava nos raios e trovões? Viera ao mundo sem nada e da mesma forma retornaria. Viver era rir de tudo enquanto fosse vivo. Mas havia gente que não gostava de sorrir, que tinha muito prazer em destruir… Acossado pelos homens, ele sumia mata adentro, com o canivete de cabo de osso gasto e a manta de feltro, e, junto, a Bisteca, que se sentia incomodada ao balançar a cauda invisível para espantar as mutucas brabas.

No mesmo dia em que Rodoão cortou o rabo de Bisteca, Chiquinho sentiu o peito agulhado, não sabia como estancar o sangue do toco de rabo da cadela, e começou a sentir o mundo girar freneticamente, e a baba escorria sem controle, como se estive louco. Então, pegou o canivete e a manta emporcalhada e sumiu trilha afora, quando já escurecia, acompanhado de Bisteca, disposto a nunca mais ver os homens, os monstros.

5

Mas isso ia acabar.

Naquela noite, ele voltaria para casa, antes do amanhecer, aproveitando um pouco de sono que a noite lhe reservaria antes de começar a lida do campo. Provavelmente, a essa altura a raiva teria dissipado, talvez saciada, restando apenas o cansaço da caçada. Os dois peões eram de confiança, submetidos à obediência; nenhum deles teria a mínima coragem de delatá-lo. Sabiam de sua ferocidade. O negro conheceria o mando; não faria mais passar vergonha. Um negro sujo e babão. Sabia exatamente aonde queria ir, mesmo na escuridão. Desde que ali chegara, vindo com sua gente e cachorros, foragidos da patrulha, embrenhou-se naquela parte da mata, entre várzeas e morros, cipoamas e unhas de gato, para caçar e também para conhecer os segredos da floresta tropical. Depois, que se tornara íntimo da mata, deixou de caçar, enjoado de carne de capivaras, porcos, antas, veados e macacos. E, também, perseguir animais para abater e comer já não condizia com sua condição de homem respeitável e porque havia outros negócios – grilar terras mesmo que demarcadas e, sobretudo, com a escassez de bebida alcoólica, resolvera montar um alambique e transformar o canavial em aguardente e vendê-la com boa margem de lucro; e, também, conseguira fazer um chiqueirão só de porcos do mato ferozes, que ele matava a balas, com tiros certeiros, bem no meio da testa, só para ver os brutamontes caírem num rodopio estatelado. Ele sabia exatamente para onde o idiota tinha fugido; já o tinha visto uma ou duas vezes por ano quando vistoriava a mata.

No meio do caminho, perto do rancho de caça, estacou o cavalo baio, ouvindo os cachorros presos numa gaiola de lascas ladrarem, um cachorro malhado de orelhas caídas e outro preto igual lobisomem, com duas manchas brancas sobre os olhos como estrelas; os danados já sabiam que, naquela noite, haveria boas aventuras mata adentro e, por isso, eles não se continham, latindo, latindo, como se já estivessem diante da presa. Disse aos peões: “Mire e veja: os desgraçados já sabem que terão uma noite e tanto. Estão doidinhos por uma corrida.” Soltou-os e, em seguida, saíram troteando por um caminho que rapidamente se transformou em picada, em brejal e também morros sinuosos. A noite os enrolou numa cortina negra. Rodoão, entretanto, não estranhava a escuridão. Para ele, rodopiando em sua vingança, a visibilidade parecia ter aumentado, como se os sombrios cipós e árvores, e salgueiros e sarças, em vez de adensarem a escuridão, estivessem criando espaços bem mais claros, permitindo avançar montados, desviando-se por entre troncos e as impenetráveis moitas.

Mas logo tiveram que deixar os cavalos e seguir a pé, em direção do que ele imaginava encontrar com o alvo – o negro sujo e babão. “Se as onças comerem os cavalos?” – disse abafadamente um dos peões, bastante intimidado. Ao que ele, como um raio cheio de ódio, revidou: “Não se preocupassem. Na mata, havia quantidade absurda de animais pequenos e mais fáceis para uma onça esperta, que não gostaria de levar coices de três cavalos assustados.” Os cachorros corriam esbaforidos, farejando, endoidecidos, acuando aqui e acolá, atrás de lagartos e sapos e bandos de capivaras que se moviam para as margens dos riachos. Numa clareira, deu a ordem: “Vamos arranchar; é por aqui. Uma dose de paciência e a coisa está feita”.  Sobre a copada das árvores uma lua enorme, clareando como dia. “Lua cheia que estrondeia, bate na mata e saracoteia” – voltou a dizer o peão quase como sussurro, talvez se lembrando de outras paragens. Deu aos cachorros dois pedaços de carne seca de capivara que trazia no bornal e os repreendeu: “Descansem quietos, nenhum latido, que logo terão que mostrar por que vieram.” Em seguida, recostou-se num tronco de peroba e ficou a cismar, calculando o quanto poderia ganhar quando colocasse as tralhas do alambique a funcionar… Mas foi tomado de raiva quando se lembrou da afronta que tivera quando, após cortar o rabo daquela cadela, o dono do armazém sequer tivera a boa vontade de lhe servir outro copo de cachaça, tratando-o como um sujeito desqualificado. Sim, não deixaria passar em branco tal afronta: o negro sujo e babão estava com as horas contadas. E o dono do armazém também, aquele português imbecil. Ou não se chamava Rodoão.

6

Os cachorros não estavam à vista, farejavam e ladravam mais adiante, entre os enroscados de cipós e unhas de gato. Sob o luar branco, as sombras dos três homens dançavam fragmentadas e intermitentes entre as árvores altas, projetando-se longas e intactas  sombras pelo declive de encostas. Rodoão caminhava tão depressa quanto um cavalo, enroscando-se, esbravejando, mudando de rumo sempre que espinhos rasgavam sua roupa ensebada e sentia a pele sangrar. Os cachorros seguiam à frente e suas sombras se encurtavam ou se alongavam de acordo com o curso da lua, até que, por fim, pisavam nas próprias sombras.

De repente, os cães farejadores se aquietaram e desapareceram. Uma cascavel começou a sacudir o guizo freneticamente e os cães recuaram. “Essa maldita!”, xingou Rodoão. “É capaz de picar os cachorros.” Mas na semiescuridão não conseguia vê-la, por isso, ele chamou os cães de volta. Se acendesse um fósforo, ou um punhado de pano velho que trazia no bolso traseiro, poderia vê-la e descer-lhe o cano da espingarda sobre o espinhaço, sem piedade, mas isso faria com que o idiota, se estivesse por perto, alojado no topo de uma árvore ou num desvão de pedras, se assustasse e saísse correndo. Os cães recuaram, intimidados, roçando as suas pernas. Quando contornava o pedaço de mata, desviando-se da cascavel, um coelho saltou quase debaixo de seus pés, dando-lhe um susto de esfriar a espinha. Podia ter atirado, e quase o fez, mas não queria denunciar a presença deles. Mais uma vez se conteve – não era aquilo que caçava.

Mas, do alto da copada, um bando de macacos observava-os quietamente, invisível. O bugio mais velho espiava-os com olhos fixos e furiosos; se fosse dia, daria para ver o branco avermelhado de seus olhos. Aquela gente não inspirava confiança. O bugio guardava em sua memória a maldade que haviam feito há oito meses, quando Rodoão abatera quatro macacos, numa tarde de sol quando o bando se alimentava numa plantação de milho perto de um riacho. De repente, Rodoão surgira do nada, camuflado, no meio do milharal e começou a disparar. Um, dois, três e quatro tombaram estrebuchando, e o bugio mais velho nada pôde fazer senão chamar o bando assustado para o meio da floresta. Sim, jamais poderia esquecer o que aquele homem fizera… Por isso, do alto da copada, observava os três homens e seus cães, quietamente, escondidos mas enfurecidos, dispostos a atacar ao menor descuido.

Então, os cães se afastaram novamente, e logo mais adiante começaram a latir, a ganir, diante de uma presa. Rodoão e os homens ouviram o bater e o arranhar das patas no chão, no meio da folharada. “Acharam o idiota!” – comentou entredentes. Chegando no local, decepcionou-se. Era um buraco de tatu e os cães cavavam furiosamente e um pouco de terra úmida veio-lhe bater sobre o peito. “Mas que bosta!”, xingou, espantando-os. Não estava disposto a cavar buraco de tatu. Uns pontapés no traseiro dos cães fizeram com que retomassem  o farejamento por uma trilha ainda mais tortuosa, íngreme, entre pedras e espinheiros.

Um pouco atrás, seguia-os o bando de macacos, guiado pelo bugio mais velho. Farfalhavam sobre a copada das árvores, sob o clarão do luar, cobertos pela folhagem densa. As mães bugias haviam ficado para trás, cuidando dos filhotes, e ali, na perseguição imperceptível, somente os macacos mais velhos, e todos sabiam que aqueles homens não eram confiáveis. Sabiam que aquelas estranhas armas cuspiam fogo e matavam, pois tinha sido assim há meses.

Passara da meia-noite e a madrugada enregelava; a Lua pendia no céu e, um pouco mais, sumiria, deixando a mata opaca. Seria um grande fiasco se Rodoão e seus homens voltassem de mãos abanando. Mas jamais perdera tempo nas empreitadas. Farejava como os cães e seus instintos nunca o haviam enganado. O idiota estava por ali, escondido, ou no alto da copada, ou em alguma gruta de pedras como os bichos do mato fazem. Logo, antes que a Lua sumisse e deixasse o negrume tomar conta da floresta, topariam com o idiota.

Então, os cães começaram a latir freneticamente na frente de uma gruta formada por pedras pontiagudas e, no meio dos latidos, ouviam-se os ganidos da Bisteca, confrontando-os, em defesa de seu dono.

– Vamos nos dividir em círculo – sentenciou Rodoão, empunhando a espingarda nas mãos rígidas e suadas.

Os homens se separaram quietamente, flanqueando, e o círculo começou a se fechar, enquanto os cães eram controlados por Bisteca. Se ele tentar fugir, será abatido como um porco do mato, rilhou os dentes Rodoão, os olhos fixos na direção dos cães em fúria.

A mata se calara diante dos latidos dos cães. Ao redor, por quilômetros, não se ouvia um só ruído. A madrugada adiantara-se e a Lua sumira atrás das grandes árvores; a luminosidade foi tomada por um negrume opaco, mas, no lado do sol-nascente, o céu começava a clarear. Ali, no meio da mata, o negrume se fizera impenetrável, e Rodoão caminhava leve sobre a folharada na direção da boca da gruta, a espingarda aprumada, o círculo se estreitando. Havia a probabilidade de o idiota ter vazado o círculo e ter deixado a maldita cadela sem rabo amarrada na boca da gruta como isca, mas Rodoão sentia que ele ainda estava ali. Saltava para a frente na ponta dos pés, com o corpo inclinado na direção do alvo, perscrutando a densidade da vegetação e o topo das árvores.. A cada passo o círculo se estreitava, as armas preparadas, como se estivessem tocaiando um veado.

Do alto da copada, um pouco atrás, o bugio velho e seu bando espreitavam os movimentos circulares dos homens e, nos glóbulos brancos de seus olhos, havia listas vermelhas de ódio. Eles viam no breu da noite. Lá estava Chiquinho Preto encolhido, babando, e a sua cachorra latindo desesperada. E aqueles homens que haviam matado, há algum tempo, os macacos que comiam milho e se divertiam… O avanço contínuo dos homens, fechando o círculo, com as armas empunhadas, despertava o desejo de vingança no velho bugio.

– Está aqui o desgraçado, o idiota! – gritou Rodoão, estalando com as botas os ramos secos, ordenando aos cachorros que se calassem e, por um curto espaço de tempo, o silêncio pairou sobre a noite.

Rodoão atirou-se para a frente, alcançando a gruta quase ao mesmo tempo que os outros. Chiquinho Preto se encolhera mais e mais, e parecia uma cobra enrolada, espremida entre as pedras, e a cadela voltou a ganir.

Antes que houvesse um estrondo ensurdecedor, os canos fumegando das espingardas e revólveres ao redor da gruta, eclodiu uma avalanche de macacos e guinchos estridentes vindos do céu, como raios, e os três homens foram tomados por unhas e dentes afiados, e os tiros disparados saíram sem qualquer direção, cravando-se nos troncos de árvores e se perdendo no embolado da cipoama. Afrontados, os homens começaram a gritar, os corpos lanhados, as roupas destruídas, e engendraram uma corrida desnorteada mata afora, perseguidos pelo bando de macacos. Desandaram a correr no escuro, entre as árvores, agarrando-se à casca rugosa das perobas e figueiras, tentando correr aos tropeções para o campo aberto.

Quando a manhã começou a se mostrar, Rodoão se achava prostrado à beira de um riacho, o rosto e o corpo ensanguentados, sem armas e sem direção, sem saber o que tinha acontecido. O céu cinzento se tornara vermelho. Enquanto tentava se lavar, ouvia distante a algazarra de um bando de macacos em festa como se estivesse diante de roça de milho verde. Assustado, começou a correr, saindo num campo aberto arado, tropeçando nos torrões de terra endurecida

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