Como é bonito imaginar (Hilton)

COMO É BONITO IMAGINAR…

Hilton Görresen

 

Em meus delírios de imaginação (frutos da leitura de gibis e dos filmes americanos na infância), sonho que pertenci à Legião Estrangeira, no norte da África, para onde se refugiavam os que desejavam esquecer seu passado ou que, por algum motivo, resolviam fugir de sua pátria. Enfrentei bravamente os temíveis tuaregues do deserto e – por que não?– recebi do governo da França a medalha Legião de Honra. Ótimo para meu currículo (e para contar aos netos).

Claro, em meu sonho ignoro o malvado sargento que nos obrigava a marchar por horas debaixo do sol do deserto, com uma pesada mochila nas costas; os ataques de surpresa do inimigo, que deixavam vários companheiros esparramados no chão com uma bala na testa; as intermináveis horas de ócio dentro do forte, vendo apenas as sinuosas dunas de areia e as horrendas caras de ladrões e assassinos refugiados na Legião (quem sabe até algum originado da Operação Lava Jato).

Daí minha imaginação salta para o século 19, em Paris. Sou um rico marquês que frequenta bailes, saraus e a intimidade das belas cortesãs. Passeio de carruagem nas românticas vias parisienses. Nas poucas horas que me deixam essas atividades mundanas, escrevo minhas obras de sucesso.

Mas péra aí: escrever à mão, com pena de pato, até endurecer as juntas dos dedos; viver iluminado a óleo de baleia, sem a água quentinha do chuveiro elétrico; locomover-me numa carruagem com cavalos soltando bosta pelas ruas, e em estradas desconfortáveis e lamacentas; morar em residências sem descarga nos banheiros; estar sujeito a receber uma “baciada” de dejetos urinários e intestinais, ao passar debaixo de alguma janela? Nem em sonho!

Passo, então, ao tempo dos cavaleiros da Idade Média. Não podia dar outra (a imaginação é minha): pertenço ao nobre círculo da Távola Redonda. Envolto em minha reluzente armadura, saio pelo mundo a enfrentar tudo o que vier pela frente, desde monstruosos dragões até revoltantes pererecas que assustam as delicadas damas. Escolho uma bela dama, a quem dedicarei meu fiel amor platônico. Pra que maior romantismo?

Mas quê? A tal da armadura pesa pra caramba, pareço um astronauta caminhando na lua; se levo um tombo não levanto mais do chão. Não sei como enfrentar um dragão (até hoje só me defrontei com o da inflação) e tenho nojo de pegar em perereca, aquela coisa fria e gosmenta. E esse tal de amor platônico não dá nenhum prazer (considere o duplo sentido).

Imaginar é bonito, não é, leitor? Mas não deixando de lado tudo que nos permite a atual tecnologia.

 

(TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A GAZETA DE SBS EM 20.02.2021)

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