De bondes e decibéis

Barra Velha, verão de 2005

 

Machado de Assis povoa meus pensamentos nesta tarde. Em crônica de 1875, o escritor manifestava-se acerca da implantação dos bondes elétricos em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Passageiro de um dos bondes puxados por burros que ainda circulavam na cidade, revelou que, ao passar por um bonde elétrico, ficara impressionado não com o milagre da eletricidade que dispensava a tração animal. O que mais o impressionara fora o gesto do condutor do bonde elétrico:  os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bonde com um grande ar de superioridade. (…) Sentia-se nele a convicção de que inventara não só o bonde elétrico, mas a própria eletricidade.  Dei risadas diante do talento e da ironia fina do fundador da Academia Brasileira de Letras ao expor, em suas crônicas, o cotidiano carioca do seu tempo, tão distante e tão perto dos nossos dias, eis porquê:

Minhas férias foram planejadas para descansar à beira-mar. Apenas uma rua interpõe-se entre a vastidão oceânica e nossa casa. Essa rua tornou-se um dos pontos preferidos de jovens cujas bagagens incluem potentes amplificadores de som, que neste momento azucrinam meus ouvidos. Constato agora que, assim como o condutor do bonde elétrico de Santa Teresa, esses meninos levam-me a sentir neles a convicção de um poder e superioridade tal, que lhes confere o direito de infernizar a vida dos simples mortais durante as férias.

Um mínimo de reflexão permite-me perceber que não se trata simplesmente do ajuntamento de um grupo de jovens a fazer barulho, mas partícipes de uma tribo sem noção, individualista e pobre de ideias.

O culto ao som exacerbado apresenta-se carregado de uma força simbólica relacionada não só ao poder, mas a uma falsa imagem. De uma forma ou de outra, na sociedade contemporânea precisa-se aparecer. Este aparecer tornou-se um item importante no currículo desses jovens em busca do que entendem por sucesso, condição sine qua non para vencer na vida, ganhar muito dinheiro, ou apenas para elevar a autoestima por não serem um dos privilegiados famosos expostos na mídia, ou vencedores do Big Brother, ou detentores de troféus esportivos, ou ainda modelos, e tantos outros que ao conquistarem o sucesso têm acesso à fortuna imediata.

A palavra sucesso significa, na origem, aquilo que sucedeu, que aconteceu. Esses meninos do som precisam acontecer, provocar algo sensacional. Equivocadamente colocam-se acima do bem e do mal, acontecendo por meio de altíssimos decibéis. Ao observá-los e tentar decifrar o que vai por suas cabeças, percebo que o som não lhes proporciona prazer para o espírito, vida interior ou simplesmente a alegria, o festejo.

Pobres de ideias, estão ali, bebendo, acompanhados de meninas que rebolam em cima dos capôs dos carros e na calçada. É a alegria da juventude, festejaria eu, não fossem as expressões em suas fisionomias alienadas. Quando alguém reclama do barulho esboçam sorriso abobalhado, seguido por arrogante ar de superioridade e desprezo. A certeza da impunidade (onde anda a polícia?) os eleva a donos do mundo, a exibir os oito ou dez alto falantes instalados no porta-malas dos seus automóveis, símbolos do cetro, do trono e da coroa.

Numa espécie de torneio, três ou quatro carros fazem tocar ao mesmo tempo, no mais alto grau de decibéis, uma música diferente. Enlouquecedor. Resolvo pegar meu carro e prudentemente sair e dar uma volta lá para as bandas da Lagoa. Volto para casa e percebo, admirada, um silêncio só; foram tantos os telefonemas para o 190, que a polícia acabou aparecendo. Soube então que, advertidos, pagaram as devidas multas, e dois foram levados para a delegacia, fato que atraiu curiosos, formando uma pequena aglomeração.

Continuo a escrever, agora em paz, e concluo: ao contrário do que se poderia supor, a meninada adorou! Ficaram realizados. Afinal aconteceram, fizeram sucesso, seu poderoso som promoveu um evento digno de aglomeração e comentários. Tal como ocorreu com o Bruxo do Cosme Velho, passados mais de cento e vinte anos do seu relato, quando a ciência e a tecnologia estão a anos luz do bonde de Santa Tereza, impressionam-me não tanto os inventos, mas o grau de superioridade estampada nas fisionomias desses jovens, tal qual a do condutor do bonde elétrico do século passado.  Tão longe e tão perto.

Sobre o dito e o não-dito acima (em 2016)

Em janeiro de 2005 eu estava ansiosa por sossego, silêncio, e com muita inspiração para escrever.  No melhor da festa, bem acomodada em frente ao mar, assaltaram-me os tais sons a que já me referi.  Barulho de jovens, geração pós-cultura, ou seja, da cultura banalizada, bastante discutida por Mário Vargas Llosa em seu livro A Civilização do Espetáculo (Ed. Objetiva, 2013), definida por ele como a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio é a paixão universal.  

O espetáculo acontecia também nos corredores da Univille quando eram divulgados os resultados dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC).  Gritos, abraços e gestos desmedidos entre alunos aconteciam nos corredores, quando constatavam a aprovação. Era um festerê ruidoso e exagerado. Compreendendo a razão do contentamento, afinal estavam vencendo uma etapa das suas vidas, não sem sacrifício na maioria das vezes.  Porém o exagero denunciava um autoengano, uma alegria inconsciente do quanto ainda precisavam aprender pelo resto das suas vidas. Da minha sala de trabalho, eu exclamava – já imbuída da ideia presente no título do livro de Vargas Llosa: é a sociedade do espetáculo!

Agora, em janeiro de 2015, dez anos e alguns livros depois, já aposentada, eis que  me encontro na mesma mesa, no mesmo lugar, olhando o mar, me acomodando para escrever. Surpreendem-me o silêncio, o barulho do mar, a paz. Um ponto de interrogação instalou-se em minha cabeça.  Sumiram os sons exacerbados, para onde foram não sei, creio que não se extinguiram totalmente, pois as mudanças não se dão por cortes radicais, a não ser por decreto de um ditador qualquer.  Concluo que as inovações surgidas nestes 10 anos de intervalo (2005-2015) – como a popularização e o aperfeiçoamento de celulares e seus 1001 aplicativos e congêneres – chegaram para proporcionar-me sossego.  Ultimamente as selfies permitem aos jovens e nem tão jovens elevarem sua autoestima ao lado de ricos e famosos, poses de modelo profissional, boquinha de selinho, de tudo podemos ser um pouco.

Igualmente nas redes sociais, o exibicionismo presente no facebook possibilita a autoespetacularização. A vantagem é que me livrei dos altíssimos decibéis. O espetáculo do som tornou-se o espetáculo imagético que para minha glória é silencioso. Agora ninguém mais fala nem se fala, apenas olha-se para baixo manipulando seu novo instrumento de autopromoção.

Não cedendo a generalizações devo fazer justiça a outra categoria juvenil: neste momento, 17h30 do dia 3 de janeiro de 2015, tenho o prazer de ouvir, da varanda aberta ao lado da varanda envidraçada onde escrevo, amigos de meu sobrinho conversarem e se divertirem sem estardalhaço, ao som de um violão tocado por um deles. Concluo, então, que em meio à massa da pós-cultura há jovens que escaparam da banalização, cultivando o bom gosto, o bem viver, e o divertir-se também, por que não? Qualifico este grupo e outros, como alguns dos meus ex-alunos, como ilhas de excelência.

Porém sinto que ainda temos um longo caminho a percorrer antes que o transformar o divertimento em valor supremo e rotineiro, a banalização da cultura, a generalização da frivolidade, a bisbilhotice e o escândalo se esvaiam e partamos para nova fase civilizatória. Infelizmente, e apesar das ilhas, ainda impera a Civilização do Espetáculo.

 

Em tempo: Num dia ensolarado de inverno fizemos um piquenique em família nos arredores de Campo Alegre, lugar lindo, duas cascatas murmurando aos nossos ouvidos que ainda era possível dialogar com a natureza. Breve, muito breve, aquele momento de paz: de repente um estrondo anunciou a presença, não muito longe de onde estávamos, de jovens que se organizavam para uma festa tipo rave. Para tanto, estavam instalando o som, nada mais nada menos do que um painel com cerca de dez alto-falantes…. Pode???? No meio da mata? Ali não havia sinal para celular…

 

 

COMPARTILHE: