De ensopados e outras querelas (Zabot)

 

DE ENSOPADOS E OUTRAS QUERELAS

 

Meu amigo Franklin, sujeito amistoso, anda revoltado. Ou por outra — virou limão azedo. Síndrome das redes sociais, disparam. Ultimamente,  bate  e rebate,   sempre de primeira. Sem aperceber-se internalizou a lei de Talião: “Olho por olho, dente por dente” Ou por outra:  bateu, levou.

A bola, nada de amortecê-la na concha do pé  e sair jogando. Toques sutis. Leveza. Magia.  Gorduchinha famosa do Osmar Santos.

Mudou meu amigo,  e  muito; percebe-se claramente. Bicuda às pencas é com ele. Nada de meias palavras ou botar  panos quentes.

E, para completar, naquela tarde quase põe o botequim de  sua amiga Ema, a pique. Alguém inadvertidamente adentrara no recinto. Não se contendo, arvora-se, bufa e larga o verbo:

— Fora daqui, pentelho!

E vai à desforra. Bofetadas, o escambau. Mas, graças à turma do “deixa disso”, o armistício. Dona Ema rodada que é na vida, desopila o fígado:

— Que  isso, Franklin, logo você, um intelectual. Franklin ainda desembestado contra-ataca:

— Esse merda merecia mais. Bem mais. Uns bons chutes nos fundilhos. Pena que evaporou,  livrando-se, assim,  de uma boa sova.

E não se dando por  satisfeito —, provoca dona Ema:

— Ah, aquela cartucheira — prepara a arma —, pois se voltar leva chumbo nos cornos…   Traíra de uma figa.

Ânimos serenados. Nervos no lugar. Juvenal, parceiro de carteado, curioso, o instiga:

— Franklin — cá entre nós —, qual o motivo de tanta  intempestividade? Eu, heim…!

Franklin fora criado nos fundões; daí as digitais de caipira presentes nele, especialmente o hábito das caçadas. Tatu, paca e  cotia,  preferidos. E ensopado de tatu, então, iguaria imbatível. Dobrava léguas, mas sempre retornava com um tatuzinho no embornal. Pouco adiantará Juvenal alertá-lo:

— Franklin, os tempos mudaram. Carne de caça, hoje, rende autuação. Processo.  E até xilindró. Embora urbanizado, com requintes de gentleman não largava o osso. Enturmou-se com caçadores lá da serra. E, driblando a fiscalização, sempre  botava um tatu no frízer.

A infeliz coincidência:  a chegada  ao  remoto vilarejo da famosa Caravana de Cultura do amicíssimo Joel Mendes.  O reencontro rende. Conversa solta. Evocações. Cerveja à solta. Lá pelas tantas o assunto caça vaza.

— Joel do céu, ainda ando caçando!

Joel não acredita no que houve;  reminiscências, entretanto,  vem à tona. Água na boca.

Franklin, olhar avivado:

— Joel, você lembra daquela caçada de anta nas bandas do rio Piquiri.

— Claro que sim, amigo. Carneada  grande. Três dias de furdunço. Naquela fostes de sorte, se a cascavel tivesse  picado, provavelmente hoje não estarias aqui.

Relembram pormenores.  Seguiam no picadão de antas. Cães à frente. Matilha latindo. Lombada  encosta acima . Quando se deram por conta, perderam a pegada. Parada providencial. Silêncio. Os cães  latiam distanciados. Não esperavam, porém pelo chiado,  guizos chocalhando. Cobra no pedaço. Incomodada com o entrevero, estrilava a víbora. Espreitam e espreitam. Mata adensada. Dois passos  adiante, a fera.  Armara-se para o bote fatal. Língua revolvendo-se afiadíssima.  Fossetas acesas.

Juvenal negaceia. Bom de pontaria, recua, engatilha a cartucheira, mira e prega fogo. Disparo mortal.  Contorce-se raivosa a fera. Ufa! Vocifera Juvenal aliviado.

Por um triz não desistiram da caçada. Mas, como diz o ditado:

— “UM dia da caça, outro  do caçador.” Percebem latidos avolumando-se.  Encurralaram a anta  as feras, e esta retornava fungando  picada afora. Cenário de guerra. Hecatombe.

Franklin, aparteando:

— Que chumbada certeira, não!

Juvenal, contudo,  não deixa por menos:

— Também naquela distância — e a queima roupa —,  até eu! Gargalhada das boas. À solta.

A conversa seguia assim:  quando – para selar a velha amizade —,  acertaram um ensopado de tatu. Não contavam, porém, com um dedo duro no pedaço.  Tudo ouvira, entregando-os sorrateiramente ao fiscal do IBAMA, casualmente na Vila.

A prosa à base  de ensopado de tatu — como combinado —, ia às mil maravilhas; porém, eis  o inesperado:  polícia no encalço.

E não deu outra: flagrante e o escambau. Quase dá xilindró não fosse a prestatividade do  doutor Nazareno, rábula amigo,  também parceiro de caçada.

Joel e a Caravana da Cultura partiram, mas o fato repercutiu até na capital paranaense. Porém,  Franklin contrariado, não perdoa:  sonda aqui, cavouca acolá. Faz campana. Checa. Confere. Não tem mais dúvida sobre  quem fora o alcaguete.

Vez por outra acoitava-se  no boteco de dona Ema. Sujeito bundão, cara de poucos amigos. Monjolo sem água. E naquele final de tarde, ao vê-lo chafurdado no boteco — literalmente subiu nas tamancas — ; e deu no que deu: entrevero.

Superada a refrega, Juvenal tenta convencê-lo a mudar de hábito. E, amistosamente, o provoca:

— Ao invés de ensopado de tatu, por que não de galinha caipira, amigo? É tudo a mesma coisa.  Bom demais, e sem encrenca.

Franklin — no melhor estilo caipira—, dispara:

— Eu, heim! A mesma coisa, uma ova! Fique você lá com suas galinhas Juvenal; prefiro mesmo ensopado de tatu.

Dona Ema lá do fundo balcão, percebendo a mancada,  sopra entredentes:

— Sossega o facho — parla baixinho caipora —,  antes que seja tarde.

Juvenal – espirituoso que é —, não perde a vazada:

— Eu, hein — depois dessa —, saltei de banda!

— Prefiro mesmo ensopado de lagarto.

 

Joinville, 16 de setembro de 2023

Onévio Zabot

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