De noite, um dia

Os primeiros raios de sol rompem a escuridão de uma noite infeliz. A madrugada, às vezes, não é boa companheira. Mas há um porvir de esperança na luz que invade a fresta da cortina às 6h52 e que beija-lhe suave as pálpebras. Tanto renascimento o amanhecer é capaz de propor! Não a ela, não nesta manhã. Ainda que o instante ofereça um pouco de alívio, abrir os olhos é penoso, ver o que quer que seja é, ainda, sombrio. Mas não adianta os olhos fechados, não se foge do que está dentro, carregado, impresso em nós. A imagem de uma ausência insiste em aparecer, como um quadro triste. Moça em posição fetal, abrigo imaginário. Do cabide pende o vestido, sem suor, sem aplauso.

Ao sul da cidade, ele bate palmas. Um cachorro late. Uma mulher abre a porta. O ônibus no qual chegou seguirá despejando trabalhadores de volta às suas casas. A cozinha exala um cheiro de café, que ele tomará imaginando sua cama e um sono merecido. Mas antes do almoço já estará de pé, porque mais do que trabalhar, há coisas que precisam ser feitas, há uma vida em andamento e há que se ser feliz, seja ouvindo música, assistindo ao futebol ou vendo TV, não fará muito mais do que isso, porque não é de sua cultura fazê-lo, ou porque a vida anda exigindo entrega total à luta pela sobrevivência e qualquer programa que fuja da rotina dá trabalho.

Mais de quinhentas mil pessoas, hoje, seguirão nas mais diversas direções, cada uma com seus problemas, cada uma com suas soluções, todas com algum motivo, alguma renúncia, algum calo ou pedra no sapato, olhando vitrines e imaginando-se descalças. Chaminés lançarão fumaças no céu, que de azul se transformará em cinza no final da tarde, calor úmido, prenúncio de chuva forte. Águas de março sem poesia.

As horas voam, o mundo caminha.

É laranja o sol que repousa sobre a linha do horizonte, chuveiros despejam água e prazer sobre os corpos que chegaram em casa e que sairão em seguida. Nos cabides, roupas de sair se exibem na esperança de serem escolhidas. Os faróis dos carros já estão acesos; as luzes nos postes iluminam calçadas; desejos e expectativas se acendem à luz da lua. vista de cima, a cidade ferve, emana fachos de luz que percorrem suas vias em vermelho e branco. À noite, a cidade parece maior que durante o dia, é quase cosmopolita. Os sons, duros, mecânicos e agressivos de horas antes, agora ganham contornos de festa, há copos tilintando, há risos soltos, e um cheiro de perfume que embriaga tanto quanto olhares de conquista.

A bailarina recolhe a tristeza, esconde-a sob a fita que envolve suas canelas, retira do cabide o vestido não usado na noite anterior, volta ao palco para o encontro tão desejado. Aquece o corpo, alonga-se, inspira, expira. Havia um objetivo em todo esforço durante os meses de ensaio, havia a esperança do encontro e a certeza de realização. Ainda sustenta, em meia ponta, o medo, não da queda, mas do fracasso de não ter a quem apresentar suas conquistas.

O trabalhador estará de folga hoje, quando o dia encon-trar a noite, e ainda estará, quando a noite reencontrar o dia. Resta-lhe saber que há uma apresentação na cidade, de uma bailarina que anseia pelo encontro e que seus mundos podem se encontrar, nem que seja no breve espaço de um crepúsculo, quando dia e noite se misturam e tornam-se uma coisa só, como eles ainda não conseguiram.

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