“Deixe tudo, pai” (David Gonçalves)

DEIXE TUDO, PAI

Viviam felizes. Nem percebiam o tempo. Envelheciam e se amavam. Um dia, puft, fazendo o almoço, um mal súbito, a mulher morreu. Assim, do nada. Restaram a panela e a colher no piso. Assim.

O susto. O abismo. O nada. Procedeu-se o enterro. Não havia lágrimas. Só um cansaço esquisito, o ssss de saudade. O vvvv do vazio. O nnnn do nada.

Os filhos: Pai, agora tem que vir com a gente.

O pai: Ihih, sei lá, acho que não posso.

Os filhos: Não vamos deixá-lo aqui sozinho, jogado às traças. Ah, ah… O que dirão as pessoas?

O pai: Esse cheiro, ah, esse cheiro…

Os filhos: Mas que cheiro?

O pai: O cheiro dela. Da tua mãe. Se sair, não posso levar o cheiro dela. Sempre dormi com o cheiro dela.

Quarenta anos juntos. Uma briguinha de vez em quando. Só pra provocar o diálogo tortuoso.

Os filhos:  Onde está o cheiro da mãe?

O pai: Por tudo. Nas roupas, nos travesseiros, nos lençóis. Nas plantas, na terra do quintal…

Os filhos: Levamos as roupas da mãe. Não se preocupe. A gente enche o baú velho com os pertences dela.

Mas haviam outras coisas.

O quê?

Os cachorros. Três vira-latas de pelos amarelos. Levamos também. O boizinho malhado. Ah, esse não. Pra onde ele vai? A gente pensa nisso depois. Um dos filhos riu abafado. Com certeza, uns bifes. O papagaio Terêncio. Levamos. Se incomodar, a gente dá um jeito. Os porquinhos. Pro matadouro. Não dá pra criar porcos em apartamentos. Deus me livre. Os vizinhos denunciam. Ai, Jesus, eles não vão pro matadouro, não. Eles têm nomes. Joãozinho e Miguelito. Quando se dá nome aos bichos, eles criam alma. De jeito algum, eles não vão pro matadouro. Oh, velho burro: porco é pra depelar  e fritar. As flores do jardim.  Pagamos alguém pra tosar e regar. Mas não dá pra levar? Isso não dá. Ahãhãa. O lagarto rajado. Tem lagarto também?

O lagarto comia duas vezes, cedo e de tardezinha, nas mãos dele. Língua fina comprida de fora.

Deus do céu! O que vamos fazer com um lagarto?  É apartamento. Nem cachorro pode ter.  Parece que você vive na Idade Média.

Eu criei ele. Desde pequenino. Um ovo cedinho, outro à tarde. Não pode ser gelado. A gente só faz um furinho na casca. Ele chupa com a língua fina. Bem aqui na minha mão. Dá gosto de ver.

Mas, agora, a mãe se foi. É outra vida. Tudo mudou. Assim não dá. Quantas dificuldades por nada. Você faz isso de propósito.

Há coisas que a gente não consegue deixar ao longo do caminho. Se a gente não levar junto, tudo se acaba.

Ah, pai, não dificulte. Não somos ingratos. Nenhum de nós pode viver enfiado neste sítio.  Sem intenet, sem conforto. O mundo mudou.

As panelas de ferro?

Que panelas?

As que sua mãe usava. Elas têm que ir também.

Está bem. Damos um jeito. Quem usa essas panelas de ferro hoje? Escuta, pai: o mundo mudou. Tudo é prático.

Me deixem neste meu mundo que eu entendo. Vão em paz, Deus os acompanhe. Se há coisas que não posso levar, eu não posso ir.

Mas, pai…

Olha aí, lá vem o lagarto rajado! Vem cá, Ditinho, que eu vou preparar o ovo. Vem cá, não tenha medo.

O lagarto parou na frente dele e ficou esperando. Os filhos não sabiam o que dizer.

 

David Gonçalves

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