Diálogos (Guerreiro)

“O filósofo em meditação”, 1632, Museu do Louvre.
( obra por Rembrandt)

DIÁLOGOS
Stabat rosa prístina nomine, nomine nuda tenemus são as palavras do monge Cluniciense que encerram o extraordinário romance O nome da Rosa de Umberto Eco. A frase: A rosa antiga está no nome, e nada nos resta além do nome me ocorre ao refletir sobre a questão do título nas artes plásticas e, conseqüentemente, da leitura que delas fazemos. No Modernismo, e em particular na Abstração e Construtivismo os artistas passaram não mais a nomeá-las passando a numerar ou descrever como no “Quadrado negro sobre fundo branco” de Malevitch. Contudo, a maioria das obras anteriores ao século XVIII ostenta títulos que as consagraram devido à democratização vista nos Salões e Museus antes freqüentados por uma elite, necessitando então de uma interpretação para melhor compreensão das obras. A não ser em casos raros em que houve encomenda das obras ou de que exista registro oficial numa herança o artista dizia ao interessado no atelier ou oficina tratar-se disso ou daquilo, e os títulos que conhecemos hoje é uma questão nebulosa.
Ocorre-me uma situação anedótica vivida por Jacson Pollock durante sua fase de automatismo surrealista em 1943 ao pintar uma tela que consiste em um turbilhão de linhas e formas quebradas, verdadeiro caos, pensando em Moby Dick a baleia do romance de Herman Melville, por sua vez inspirado na Bíblia e no confronto entre o bem e o mal. O quadro foi exposto no Metropolitan Museum de New York e o curador deu-lhe um nome: Pasiphaë. Ao ver, Pollock exclamou: mas quem diabos é Pasiphaë?! Ao que o curador explicou tratar-se da rainha de Creta na mitologia grega, que seduzida por Zeus na forma de um touro gera o Minotauro. Pollock aceita a explicação e resolve trocar Moby Dick por Pasiphaë (que não tinha título!).
Dessa maneira o que dizer das grandes obras do Renascimento e do caso específico de uma pequena tela (28 X 34 cm.) de Rembrandt intitulada “Filósofo em meditação” de caráter monumental, numa arquitetura interna inclui abóbada, arco, ampla janela, porta fechada, escada em espiral e uma lareira; a composição opõe linhas retas e curvas de modo radiante convergindo para um ponto central na parede, um cesto. No lado esquerdo a figura de homem idoso com a cabeça apoiada nas mãos, à sua frente um livro aberto e uma pena sobre a mesa sendo a figura banhada por luz transfixante que vem da janela; no lado oposto uma mulher idosa mexe no fogo de uma lareira. Existe uma terceira figura “em grisaille” quase desaparecida subindo a escada, e ao que tudo indica um pentimento. Essa obra assinada e datada 1632 foi objeto de grandes nomes da literatura mundial: George Sand, Theóphile Gautier, Jules Michelet, Marcel Proust, Paul Valéry, Gason Bachelard, Paul Claudel, Aldous Huxley, Carl Jung, Rudolf Steiner, Jean-Marie Clarke, Karl Clausberg, Jean-Pierre Abellio, Régine Pietra, Otto B.Wiesma; em contraste com todas essas interpretações afins ao título o estudioso John C.Van Dyke no Rembrandt Research Project (iniciado em 1968 e finalizado em 2014 incluindo o inventário da herança em 1656) lhe dá outro título: “Tobit e Anna esperando seu filho Tobias”. Registre-se o Museu do Louvre manteve o título antigo, houve sugestões de substituir filósofo por estudioso, enquanto o Projeto Rembrandt em 2011 o intitulou: “Interior com janela e escada espiral, um estudo sob luz de câmara”.
Van Dyke argumenta afirmando que Rembrandt tinha certa fixação na história de Tobit,entretanto das 136 obras de teor bíblico em um total de 300 as que foram interpretadas explicitamente como referência ao Livro de Tobit são: “Tobias e Anna com o cabrito” (1626),” “Tobit acusando Anna de perdoar o filho”(1626), “ Tobias e o anjo no rio Tigris” (1630) e “Tobias assustado pelo peixe” (1654) existindo um total de 20 desenhos, 5 pinturas e 3 gravuras com os personagens. O Livro de Tobit ou de Tobias é considerado texto apócrifo entre o de Neemias e o de Judith narrando a história de Tobias, um homem justo e fiel aos mandamentos que fica cego, manda seu filho a uma aldeia próxima pedir ajuda, este se casa e após longa espera volta, no retorno seu pai recupera a visão; a moral da história é de que a sapiência de transmitir ensinamentos não fica sozinha. Ocorre que a quase totalidade dessas obras religiosas foram criadas entre 1624 e 1631 foram pintadas em Leiden quando Rembrandt estava filiado aos Menonitas e afastado da tradição católica familiar a que retoma em 1632 ao voltar a Amsterdam. Quanto aos indícios de que não seria um filósofo Van Dyke diz que na iconografia tradicional os atributos deste são instrumentos científicos, o globo terrestre e os livros aqui inexistentes, além de que a escada como símbolo da sabedoria só surge no século XVII; vai mais longe, a presença feminina envolvida em assuntos domésticos não preencheria a necessária solidão para a meditação de um filósofo. Contudo não explica como Tobit ainda cego tem um livro aberto diante de si e uma pena para registrar seus pensamentos durante uma pausa, algo incoerente, pois ele espera seu filho há muito tempo.
Vejamos algumas interpretações, George Sand numa nota de rodapé em seu romance “Consuelo”de 1843 cita Rembrandt inscrevendo o claro-escuro da obra no psiquismo pela passagem do mundo da pintura para o da psique, de como não pintar os objetos no claro-escuro, mas senti-los na mente. Paul Valéry a interpreta como um modelo para explicar o fenômeno da arte multidimensional, em que as manchas de luz e sombra de Rembrandt tecem o mundo secreto o comparando a Dostoievski que reflete a luta entre bem e mal. Marcel Proust enxerga no pensamento de Rembrandt a busca dos objetos em direção à luz e de como ela os encontra na penumbra. Gaston Bachelard em seu trabalho “A chama de uma vela” (1961) coloca o filósofo no claro-escuro de sua busca, trazendo sucessivamente ao real uma luz pálida ou penumbra como cogito de um sonhador criando seu próprio Cosmos. Aldous Huxley a vê como simbolizando o domínio da mente humana sobre o desconhecido através da iluminação visual e intelectual, com a escada misteriosa podendo elevar o indivíduo ou levá-lo para o desconhecido. Carl Jung pensava no homem idoso como imagem de que todos nós devemos explorar o desconhecimento interno pela reflexão.
Noutras chaves de leitura (porém com abordagens válidas) Rudolf Steiner, fundador da Sociedade Antroposófica considerava essa obra expressão máxima da oposição luz-escuridão como caminho na busca da verdade pelo próprio conhecimento. O psicanalista Jean-Marie Clarke vai além, vê na forma circular do cesto o Yin-Yang na distribuição de luz e sombra, portanto como uma mandala arquetípica na distribuição do Self, o claro-escuro e a presença de linhas retas e curvas sinalizando o esforço de reconciliação nas oposições, sendo por isso uma metáfora ao tema subjacente olhar-ver. Jean-Pierre Dazun um grande estudioso da filosofia de Raymond Abelio no esoterismo a lê através da Fenomenologia de Hegel como um fenômeno da consciência, a presença do cesto como elemento central o compara ao Omphalos da ciência hermética (o Omphalos é símbolo do centro cósmico onde se comunicam os homens e os deuses), seria um olho do gênio que nos permite conquistar aquilo que a Arte nos fornece através do livro “Mutes Liber” da alquimia como ciência especulativa para o equilíbrio espiritual, tal como versão ocidental do Satori budista. Finalmente, a filósofa Regine Pietra considera essa obra uma figura retórica da Hypotyposis de Rembrandt, uma descrição de cena na exploração filosófica pela meditação no jogo luz-sombra através da meditação como milagre da visão, o mergulho no ambiente escuro em busca da Verdade. Este, embora escuro e familiar esconda sentimentos da mente, a porta fechada sinalizando o desconhecido, da mesma maneira que a luz externa transbordante surja como metáfora da verdade universal, enquanto o fogo da lareira seria apenas a ilusão do conhecido.
Le mot juste é a definição de Picasso sobre Arte, e para mim, lapidar: A Arte é uma mentira que nos faz ver a verdade, pelo menos à verdade que nos é dada a conhecer.
E, qual a Verdade nessa obra de Rembrandt?

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