Diários do frio (Joel Gehlen)

 

Diários do frio

Crônica quinteira, Joel Gehlen, AN, 16/06/16

 

Na maior parte do tempo, tem apenas as estrelas para conversar. Claro que sempre trata de se entender em voz alta com seus instrumentos de medir o tempo, o que pode considerar um diálogo interior completo, mas com as estrelas prefere prosear a olho nu. Especialmente com a Lua, quer estar de gestos livres, para poder falar com as mãos. Nesses dias de maior afastamento do resto do mundo, o corpo celeste é o mais próximo que chega de uma forma feminina.

Seu trabalho é simples, porém, meticuloso. Estabelecido em um posto avançado sobre um rochedo que aflora próximo ao Círculo Polar, tem de tirar as medidas, estabelecer a quantidade exata e deixar passar para o outro lado do mundo a temperatura adequada, correspondente a cada dia do ano. Não dispõe de qualquer controle do calor que o Sol derrama sobre as latitudes. Então, para temperar o clima com doses corretas, conforme a estação, manipula as massas de ar polar que passam pelo seu posto de controle. O mais complexo é comedir o vento, um dispositivo sempre útil para buscar ou conduzir temperaturas com muita presteza, em todos os lugares do planeta. É como um cão de pastoreio, capaz de tanger nuvens, levar ou retirar uma onda de frio em qualquer distância. Mas o zéfiro tem personalidade indômita. Uma vez solto, não há como retê-lo, pode varrer ou arrebanhar a umidade, provocar chuvas, geadas e nevascas; gera tufões e é capaz multiplicar por dez a sensação térmica. Só se acalma quando se dissipa, por isso usa-o com precisão e comedimento.

Afora esse evento, sua atividade é quase monótona, com procedimentos que se mantêm inalterados desde a última grande glaciação. Seu turno é de oito meses, de meados de março a outubro. Embora deva estar em permanente vigilância, também pode ocupar-se com o seu vinhedo, produzir e consumir vinho, ler e escrever seus relatos do frio. No auge da primavera, o controle entra em modo de instrumento, até o fim do verão. Então, ele pega o primeiro cargueiro que passa e desembarca no próximo porto, onde se farta da vida mundana. No retorno a seu posto, confirma o seu propósito: olhar além das formas da carne, ver os esqueletos, enxergar muito depois da decomposição dos ossos.

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