Dominó
O cabo estava esperando os guardas. Tinham ido fazer a faxina nas cavalariças. Deitou-se na cama, toda de madeira. Os olhos começaram a piscar de sono. Estava quase dormindo quando os soldados voltaram. Sentou-se na cama. O soldado mais baixinho e desembaraçado disse que haviam terminado o serviço.
– Bem, vocês podem ficar por aí. Não vão pra longe.
Deitou-se, outra vez, para dormir.
– Cabo, será que nós podemos jogar dominó?
– Podem. Mas vê se vocês não fazem muito barulho. E, de vez em quando, deem uma olhada nos animais. Tá?
Virou-se de lado e fechou os olhos.
Enquanto um afastava a cama da parede, para se sentar, o outro tirou do bolso da japona um dominó velho. Dois se sentaram na cama com as pernas abertas. O terceiro arranjou um caixote de velas Linda. O cabo ouviu, ainda, o barulho das pedras sendo misturadas. Logo adormeceu.
– Quem tiver o doble maior, sai.
Cada um procurou nas suas pedras o doble. Saiu o 425. O doble seis. O seguinte jogou o seis e cinco. O outro parceiro jogava melhor que os dois. Primeiro arrumou as pedras na mão. As pedras que tinham números iguais de um lado. O resto, na outra. Escolheu uma. Quando ia jogar, pensou melhor e substituiu.
– Quatro e cinco – cantou as duas pontas abertas.
O 425 passou outro doble.
– Vieste bem carregado, hein? – comentou o Zé Bugre, mudando a ponta de 4 para 2.
Piolho demorou a jogar. O 425 reclamou.
– Não demoro. É que estava pensando… Amanhã faz… deixa eu ver…um ano que eu gosto de uma garota. Pronto, três e dois.
–É bucho?… Lá vai o três e zero.
– Que bucho, nada… Joga, vamos… É lá do meu lugar. Filha do Pedro da venda. Conheces?
– Passo! Conheço, sim… É guria direita.
– Não pode passar, tem de comprar!
– Não estou acostumado a jogar assim… Em todo o caso…
Estendeu a mão para o monte. Pegou uma pedra. Examinou as duas pontas. Não servia em nenhuma. Colocou-a com as que já tinha.
– Será que vou comprar tudo?
Comprou mais uma. Era o cinco e três. Servia.
– Fui a um baile. Lá embaixo, perto do meu lugar. Quem é que joga? Sou eu mesmo.
Piolho continuou a contar a estória. As pontas eram três e zero.
– Ela também foi. Com o irmão mais velho. Primeiro tomei duas gasosas, pra depois dançar com ela. Foi só uma conversinha… Nego bom…
– Foi aquela que escreveu pra ti?
A vez era do 425. Examinou o jogo. Querendo ver se garantia uma ponta, jogou o zero e dois.
– Escreveu só duas vezes… Vamos Zé Bugre, joga! E, no Natal, recebi um cartão de boas festas. Não te mostrei?
Zé Bugre teve de comprar. Sorte! A primeira pedra serviu.
– Se o capitão tivesse dado dispensa, teria ido em casa. Não fui mesmo por causa do serviço. Também, agora que passei, aqui no quartel, a Sexta Feira Santa que é pra mim o dia maior, não me interessa ir.
O jogo ficara de lado. Esqueceram-no. Estavam prestando atenção à conversa do Piolho.
– Comeste um bocado de bacalhau ontem, hein? – falou, rindo, o Zé Bugre.
– Pois é, ontem era dia da gente comer pouquinho. Não deu. De manhã foi o café. Sem pão! Na hora do rancho, descontei.
O cabo mudou de posição, sentindo a caixa de fósforos contra a coxa; jogou-a no chão. Os três olharam.
– O bacalhau estava gostoso, mesmo. E estão falando que vai haver galinha, amanhã, no rancho.
– Galinha, não sei. Mas chocolate, tenho certeza. Como no Natal.
– Duas barrinhas pra cada um? De quem é a vez? Sabem que ainda não peguei uma dispensa aqui no Batalhão? Também, eu sou trigo… Como é, quem joga?
– Eu peguei duas dispensas. És tu, mesmo. Só não fui pra casa no Carnaval. Por causa do bloco.
– É a minha vez?
– Hummmmmm…
Piolho perdera todo o interesse pelo jogo. A conversa estava muito melhor. Jogou, displicentemente, o um e cinco.
– Pensei que ia comprar – falou o 425.
Colocou a mesma pedra, mas escondeu os números. Estava ouvindo o resto do romance do Piolho.
– Se continuar assim, vou acabar casando. O diabo é que tenho outra, aqui na cidade. Gosto um pouco desta, também. E…
– É aquela baixinha que pegaste no parque? Não escora nada….
Zé Bugre acabou de dizer isso e deu uma risada.
O 425 era o único a prestar a atenção no jogo. Colocou a pedra 5 e 4.
– Tu é que pensas. Não pegas coisas melhor do que ela!
– Bobo! Tu conheces a minha guria? Aquela que anda sempre com a empregada do capitão? Aquilo, sim, é que é mulher!
– De fato, é boazinha, mesmo – concordou o Piolho.
– Tu dizes uma que namorou o Cabo Batista, da Primeira?
– Que nada! O Cabo Batista só tem é papo. Não engana mais ninguém.
Os três olharam para a cama do cabo. Era a quarta vez que mudava de posição. Não era possível ficar muito tempo numa só. A cama estava sem colchão, apenas coberta por uma manta fina de lã.
– Vê como dorme… Se eu dormir assim de dia, de noite não prego o olho.
– Desde quarta-feira estou dobrando serviço. E não tenho sono nenhum. Até o Joel do rancho passou o Batista pra trás.
Zé Bugre voltava à discussão. Piolho era bem amigo do Batista. Procurava defendê-lo.
– Não foi bem assim. Quando o Joel pegou a Norma, o Batista já havia terminado. Além disso…
Um barulho de cascos sobre a pedra interrompeu a conversa. Uma mula fugira da baia. As mulas, quando as correntes ficam frouxas, metem a cabeça por debaixo do gancho e o retiram da argola. Mas é fácil fazê-las voltar.
– Vamos pegar a mula ou continuamos a partida?
O cabo acordara. Indagou o que havia. Quando soube, foi logo dizendo:
– Eu pedi pra vocês… Por que não olharam? O portão tá aberto?
O 425 disse que o tinham fechado. Podia ser que o pessoal da cozinha, quando foi levar a lavagem pros porcos, o tivesse deixado aberto.
– Vão dar uma olhada! Se esta mula foge pro morro, nós vamos passar mal pra pegar ela. Vão duma vez!
Os três saíram. Zé Bugre jogou uma pedra, ainda. O cabo puxou a manta mais pra cima, ajeitou o coturno, que servia de travesseiro, e continuou a dormir.
Junho, 1965
Selecionado, à época de publicação de “Os Contistas Novos de Santa Catarina”, em edição do Sul, pelo Jornal de Letras, dos Irmãos Condé, no Rio de Janeiro. E comentado elogiosamente por Antonio Houaiss em sua coluna e, depois, em seu livro de crítica literária avulsa.