Eles não deixam

Eles não deixam trazer a Ritinha para cá. Eles me suportam, não conseguem me expulsar da casa, mas se a trouxer, dizem, vai haver problema.

O velho foi quem construiu o casarão, no século 19. Era português de origem, veio para cá sem nada, em busca de fortuna. Entrou no comércio, inicialmente como caixeiro de um patrício numa loja de ferragens; quando o patrício morreu, conseguiu adquirir o negócio da família; também casou com a viúva, que ainda era jovem. Depois de anos de trabalho árduo, utilizando escravos, com areia, cal e óleo de baleia, construiu o prédio de dois pavimentos. Mal chegou a morar nele. As madeiras ainda estavam estalando de novas, aço da sacada rebrilhando, teve uma parada cardíaca.

O outro é um pirata francês do século 18. A futura cidade não havia ainda sido povoada, era uma bela região de morros e praias ao redor da baía. Conta-se que um terrível capitão pirata aqui aportou trazendo seus tesouros, resultado de saques aos navios portugueses e espanhóis carregados de riquezas. Subiu um morro ao pé da baía e escolheu local para enterrar um grande baú. Quando foi embora, deixou um fiel seguidor encarregado de tomar conta das riquezas. Morto, naturalmente, com um tiro na testa e enterrado sobre o baú. Os séculos escoaram, seu corpo apodreceu, mas sua alma tenebrosa ali permaneceu sem desconfiar que já não era mais carne e sangue, esperando o retorno de seu capitão. O morro foi explodido, aplainado e foi aqui que o velho construiu seu casarão.

Como eu sei tudo isso? Há uns dois anos, vindo do Paraná, adquiri o imóvel dos últimos herdeiros. Já não era mais aquela joia pretendida pelo seu construtor: assoalho podre em alguns lugares, paredes externas descascadas, goteiras nos quartos, “farofa” de cupim nos cantos. Mas o local valia a pena. Rua calma, circundada por um passeio com palmeiras e bancos à beira do mar. Aos poucos, pretendia ir fazendo reformas, até que ficasse a meu gosto. Os proprietários tinham deixado alguns móveis antigos, mesa de jantar com cadeiras, um balcão e uma cristaleira de vidro.

Logo que me instalei, comecei a ouvir ruídos à noite. Às vezes semelhavam passos; outras vezes, chiados, sussurros, barulho de coisas se quebrando. A par disso, minha vida parece que ia dando pra trás. Fiz maus negócios, fui traído por parceiros, perdi oportunidades; as coisas boas parece que escorregavam de minhas mãos. Não sou muito de me impressionar com certas coisas, mas, seguindo o conselho de um amigo, fui procurar uma médium, Dona Carlota.

Ela me pediu para ir a seu pequeno centro numa quarta-feira à noite. Estava me esperando com mais duas companheiras, todas vestidas de branco. O local estava em penumbra, uma vela rugosa ardia sobre um pratinho. Não demorou muito, a médium falou que eu estava acompanhado; ela conseguia ver um senhor de barba e bigode brancos, parecendo muito furioso. Encarnando em uma das mulheres, o velho gritava:

– A casa é minha! Não quero ninguém lá.

– Você não está mais aqui. Deixe os outros em paz, irmão – dizia Dona Carlota.

– Ele vai ter de sair. A casa é minha, fui eu que construí.

A médium não conseguia convencê-lo. Quando o velho foi embora, ela me falou: tem mais alguém aqui. Era o pirata. Ele também não deixava o local sem a ordem de seu capitão.

Porra, e eu aqui entre dois espíritos teimosos. Mas não iam conseguir me vencer. Tinha utilizado todas as minhas economias na compra do casarão, não tinha mais para onde ir. Acabamos nos acomodando. Eles que chiassem, fizessem suas algazarras na casa, não iam mais me assustar. Parece até que fizemos um pacto de habitação pacífica, os barulhos foram diminuindo. Acho que até mesmo um espírito tem seu desconfiômetro.

De vez em quando ia ao centro de Dona Carlota, ver como as coisas andavam. Talvez aos poucos fosse convencendo os dois zuretas a se desvencilhar deste mundo material e irem gozar as delícias da eternidade.

Tudo se complicou quando conheci a Ritinha. Morava com a tia numa “casa discreta”, onde recebia senhores distintos. Era uma casa comum, na periferia, com muro alto, portão de ferro e uma entrada que ia dar na garagem nos fundos. Ritinha era uma garota baixa, não tinha ainda 30 anos, corpo cheinho, seios siliconados e cabelos louros que trazia sempre presos, variando o penteado. Seu rosto não era bonito, a boca de lábios escassos deixava-a com uma expressão gozada, mas o conjunto era agradável.

Fui visitá-la algumas vezes. Peguei gosto pelo seu jeito carinhoso de se aninhar em meu peito, seu rebolado quente e os gemidos que pareciam sinceros. Além de transar, a gente conversava e ria; ela também era paranaense, de Antonina. Quando havia clientes na sala, a tia dava uma batida na porta, e logo saíamos, pois a fila tinha de andar.

Ela queria dar o fora dali; contou que a tia era mesquinha, autoritária e sovina. Então me empolguei com uma ideia: por que não trazê-la para morar comigo no casarão? Precisava de companhia, de alguém para conversar, namorar, repartir as refeições, quem sabe ela fosse boa cozinheira.

Ela topou de cara. Ia se livrar da tia e dos velhos babões a quem tinha de se submeter para sustento da casa e da megera. Animado, solicitei um empréstimo no banco para deixar a casa a contento para recebê-la. Compraria cortinas, lençóis, fronhas, jogo de poltronas, máquina de lavar, micro-ondas e demais aparelhos domésticos. A parede interna precisava de pintura. Eu gostava da moça, de sua alegria e de sua entrega no ato sexual. Que se lixassem os outros, vizinhos e colegas. Não devia nada a ninguém. E pouco conversava com eles.

Mas aí o casarão começou a se agitar. Eram rumores mais fortes, objetos caindo ao chão, ventania assobiando pelas frestas das janelas. Fui novamente procurar Dona Carlota. Ela de cara foi me dizendo:

– Cruzes, a coisa tá feia!

– O que está havendo? – perguntei curioso.

– O velho está agitado. O outro também. Se pudessem, iam te esgoelar.

– Mas qual o problema?

A médium não precisou nem encarnar o velho.

– Tá dizendo que você quer levar uma vadia pra morar na casa dele. Ele não admite. Diz que é pior pra você.

– Então é isso? Diga a esta múmia que não preciso da autorização dele. E o pirata da perna de pau que também fique quieto – falei no tom de gozação.  Eu não tinha mais medo deles. Só os vivos podem nos fazer mal.

Na manhã seguinte, a Ritinha me procurou. Disse que havia parado de atender os velhos, queria ficar somente comigo. A tia estava possessa, quanto antes saísse dali, melhor. Pediu para lhe emprestar uns trocados a fim de retirar um vestido no ateliê da costureira.

– De quanto você precisa?

– Uns trinta reais, por aí. Não sei ao certo, se você puder me dar um cheque…

Relutando um pouco, assinei um cheque em branco. Não era empréstimo, ela já fazia parte da minha vida. Ficou feliz, sentou em meu colo, mexendo com os quadris sobre minha virilha, seu cabelo louro cheirando a capim silvestre. Enquanto ela saía, fiquei assistindo a um filme na televisão. Na volta, fez questão de me mostrar o recibo do ateliê. Achei que já podia confiar nela.

No outro dia, Ritinha não apareceu. Minhas ligações caiam na caixa postal. Como tinha coisas para tratar, não pude procurá-la na casa da tia. Certamente, a velha mesquinha a estava retendo; para ela a saída da moça era uma perda de renda.

Somente dois dias depois, preocupado, rumei para lá. Estava pronto a dar umas bolachadas na velha e trazer Ritinha de imediato, mesmo só com a roupa do corpo. Quem enfrenta dois fantasmas zuretas, vai lá ter medo de uma velha bruxa?

Entrei com o carro até a garagem nos fundos. Dei umas buzinadas. Em seguida me lancei pela porta lateral, que era por onde entravam os “convidados”. A velha estava estirada numa poltrona, com cara de enterro.

– Onde está a Rita? – perguntei.

– Ela foi embora. Diz que arrumou uma grana e voltou pro Paraná.

– Arrumou uma grana? Onde? De quem?

– Não sei, não sei.

Eu estava possesso, quase dei mesmo uns cascudos na velha. Mas vi que a tristeza dela era sincera pela perda da sobrinha. Quem sabe não fosse tão má quanto Ritinha havia pintado.

 

Ainda estava no trânsito, de volta pra casa, quando tocou meu celular. Encostei o carro numa vaga e cutuquei a telinha do aparelho na esperança que fosse ela a me ligar. Era o gerente do banco.

– Olha, seu Osvaldo, o senhor pode passar aqui para fazer um depósito em sua conta? Seu saldo está em vermelho.

– Mas como? Não entrou o empréstimo na conta?

– Entrou, mas já saiu. O senhor emitiu um cheque de grande valor.

– Mas como, como? – eu só repetia. Não assinei cheque nenhum.

Aí me caiu a ficha. Desgraçada! Traíra! Filha de uma prostituta.

Cheguei em casa cabisbaixo,  puto comigo mesmo. Que otário! Tinha certeza de que o sussurro de vento, o arrastar de corrente, o quadro desabando da parede eram a múmia velha e o perna de pau dando risadas.

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