Entre fronteiras (Walter Guerreiro)

 

ENTRE FRONTEIRAS

 

A proposta criada por Ana Vaz, em estabelecer um diálogo entre as artes da Literatura e da Pintura através do Haikai, especificamente, sob todos os aspectos um gênero poético entre fronteiras, mormente entre filosofia e literatura, é ambiciosa.

Em 1832, Honoré de Balzac foi pioneiro a tocar no assunto com o conto: A obra-prima perdida, no qual criou um personagem, o pintor Frenhofer, coetâneo de Porbus e Poussin no século XVII. No conto os dois veem, numa pintura abstrata, apenas cores, mas em um canto há um pé descalço maravilhoso; Frenhofer havia destruído a imagem analógica, já que esta era um simulacro da realidade – eis aí a mensagem, ir contra a narrativa; a arte deve ser uma criação própria, se ater a seu campo, ao dialogar com outra que passa a ser a ilustração desta.

Entretanto, na tradição japonesa existe o Haiga do poeta-artista Yosa Buson no século XVIII, um desenho ou arte caligráfica criado pelo Haijin, em que o poeta que escreveu o Haiku expressa a sensibilidade, em que a intenção é complementar ao poema, em geral, com o mesmo pincel e a mesma tinta, para que haja harmonia. A partir disso, surge a questão, se seriam dois momentos, o segundo decorrente do primeiro, ou se existiria ali a arte, e mais, o que seria quando o Haiga é executado por outro que não o Haijin?

Heidegger em seu ensaio: “A origem da obra de arte”, diz que, em sua essência, a obra de arte surge quando vem à tona, no momento do vir a ser, quando se instaura no mundo, ganhando forma e conteúdo. Esse é o foco, a arte como arte deve ser criação autônoma, se dialogar com outra passa a ser ilustração.

Contudo, é possível ao ilustrador criar sua arte, desde que em diálogo aberto com a narrativa, para representar sua ideia por meio da imagem e do texto, estabelecendo aí uma conexão capaz de manter autonomia. De imediato, podemos lembrar de Gustave Doré, um dos maiores ilustradores no século XIX ao ilustrar a Divina Comédia, quando no Canto XXX do Paraíso, Dante Alighieri, guiado por Virgílio, tem a visão do Empíreo na ciranda de anjos em torno de um círculo de luz ofuscante – o brilho intenso é a metáfora visual de Deus, e, na estética do Romantismo, o ápice de uma viagem mística. Da mesma forma, William Blake, poeta e pintor, integrou poesia e pintura como ilustração na série: “O casamento do Céu e Inferno” com simbologias da Apocalipse cristã, criando obras seminais como a de Nabucodonosor animalesco, perdendo as características humanas, ou a de “Cristo no sepulcro”, em que dois anjos em oposição, com as asas se tocando tais como mãos em oração, velam o Cristo morto formando um triângulo equilátero, presença da Santíssima Trindade.

Na área da crítica das artes visuais temos duas posições, a de Susan Sontag contrária ao chamado “conteúdo manifesto” por Freud e que ela prefere interpretar como “latente”, uma vez que manifesto nega interpretação ao observador, afirmando que se deve dar atenção à forma e não à narrativa, por não ser linguagem própria – ipso facto impedindo diálogo entre as artes; e, nesse mesmo teor, a de Ortega y Gasset, que afirma sua preocupação com o conteúdo humano, que, em princípio, é incompatível com o juízo estético. Outra posição (com a qual me alinho) é a de Roger Scruton, para quem a representação nas artes visuais é emoção, em si uma cognição, pressupondo uma intenção subjacente, em que as imagens são símbolos representativos através da lógica – não semânticos e sim afetivos. Deste modo, pode ocorrer um diálogo com a Literatura, desde que indeterminado e atendendo as convenções, sem as quais não existiria emoção. Para Scruton a arte é forma e conteúdo, ato de intuição como impressão dos sentidos, somente possível quando vivenciada como experiência individual em conexão com os registros da memória.

A arte ocorre no Haikai naquele momento fugaz da emoção de pertencimento no mundo, uma vez que a impermanência do instante é conceito-chave no Budismo Zen; a essência poética ocorre no recorte do mundo, na cesura do Kiregi, momento do corte entre a emoção que se sente e a realidade existente, ao suscitar a expansão entre a palavra e a imagem, resultando em uma transcendência no íntimo das coisas.

Ana Vaz tem a poesia nas veias, conviveu com os integrantes da Geração 65, marcantes na história da literatura brasileira pós 1945 e 22. Daí ao Haikai foi um pulo, já que, como pintora, tinha sensibilidade para sentir a multiplicidade das vozes que tinha em mente; pediu mundo afora, a amigos haicaistas, que lhe enviassem poemas, e a partir da leitura das palavras, deixou vir as imagens evocadas pelos poetas.

Antes de observar os quadros, torna-se imprescindível se deter na leitura dos Haikai, diria até que em voz alta, pausando ao final, momento de corte poético entre o Haijin e o mundo.

Depois, observar a obra, senti-la como Matsuo Bashô sugere: “não siga a pegada dos antigos. Procure o que eles procuravam.” Ver a obra com outro olhar, buscando a verdadeira natureza da representação, não recorrendo nem a crítica, nem a lógica, para que a obra não seja simplesmente uma janela indiscreta frente a um cenário, mas uma só na imersão da criação.

A artista filia-se ao chamado movimento do Hiper-realismo surgido na década de 60 como uma vertente da Pop Art, enquanto esta era uma crítica à sociedade de consumo e até mesmo com um toque dadaísta e de excentricidade; o Hiper-realismo se originou da filosofia de Jean Baudrillard discutindo a questão da realidade – o que vemos seria uma versão simulada da realidade, um realismo tão acentuado, que geraria um estado de hiper-realidade.

Para isso a pintura teria de ir além do Realismo, reproduzindo os detalhes com extrema meticulosidade, como numa fotografia de alta definição em todos os planos próximos ao infinito, algo impossível na visão humana; na obra finalizada não deveria existir nenhuma textura, nem marcas de pincel, o que na época era comum pelo uso do aerógrafo, tão usual na publicidade.

Para o hiper-realismo o ícone foi Edward Hopper, expressão máxima da solidão do indivíduo nas grandes cidades, porém nada é simples, por vezes esse “retrato do mundo” exige uma dissolução da imagem em névoa, uma perda de referenciais, como a que se vê em Gregório Gruber, em que se tem uma ocultação atmosférica, tal como num sonho, em que as imagens surgem do nada, criando formas etéreas, seria isso uma aparente volta ao Impressionismo?

Não, é a união entre a luz e a atmosfera, apenas uma oscilação entre as dobras da memória no recolher das percepções absorvidas, imagens de sensações das coisas nas sombras do tempo, a que se une o Surrealismo, que também desponta na justaposição dos objetos, com seus reflexos e transparências vistos de relance, ou na solidez metálica dos instrumentos musicais no silêncio.

Forma-se assim a interlocução entre duas linguagens, intertexto entre forma e conteúdo, não como citação ou releitura, porém como paráfrase plástica de uma verdade interior, que resulta na obra de Ana Vaz como especulação a respeito de um mundo que vai além do finalizado e alcança um significado no fluxo da consciência. É linguagem como interpelação da maneira mais pura, no conhecimento metafísico da essência das coisas.

 

Walter de Queiroz Guerreiro, M.A.

Crítico de Arte e Curador.

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