Eurídice

(Capítulo do livro “NEM ROMEU, NEM JULIETA”)

 

Neste capitulo, Eurídice é o próprio inferno, ou seja, é uma prisão para onde vão os famigerados condenados à execução. Nela, encontra-se Elleus, verdadeiro nome de Romeu, que definha, por razões políticas, mas crendo estar preso por causa do amor. 

 

A cadeia é um lugar de libertação de demônios, foi a primeira frase que Elleus ouviu quando adentrou no calabouço da subsede do governo de Lyon, para onde fora deposto, longe dos olhos dos centros políticos franceses, à mercê de uma ignorância trágica ao não saber o porquê de estar entre as serpentes.

Sob o efeito do cansaço e da taquicardia, ele ainda não conseguia pensar, mas, como os animais e só como eles, pressentia a fúria da ameaça; por isso debatia-se. Ele, tigre de unhas com pouco cálcio e de aparência gasta pela exposição ao sol, entrou como um desconhecido na cidade, lugar para onde aparentemente tudo convergia, desde as outras personagens, até os pássaros que migravam para aquela região, no já quase findo inverno europeu.

Descalço, pele rôta, mãos vazias, Elleus caminhava para o fim da história sem os apelos costumeiros daqueles que torcem por um final feliz. Ao seu destino, era necessário um anti-desfecho, para que com as prerrogativas da sua conclusão, a maior história de amor que alguém já escreveu fosse criada.

Ninguém sabia disso; ninguém, é claro. Apenas a minha vontade de causar coesão há um tempo desconhecido.

 

Elleus ainda não conseguia pesar essa prisão e o afasta-mento. Não conseguia ver, inclusive, ao passar entre os estrados de madeira que o prendiam, a família Shakespeare a divertir-se com os pintores que os desenhavam de forma engraçada entre as fontes e o jorro d’água. Nem a família se importou com o capturado, aos farrapos, desacordado quase, a passar entre as pessoas em direção à Eurídice

Eurídice, nome de origem grega que significa Dama da Justiça, aqui nada tinha a ver com a personagem mitológica das lendas que desembocavam no Mar Mediterrâneo.

Em Lyon, Eurídice era como se nomeava, pela população, a cadeia. E a dama da justiça de Lyon era, como em qualquer outra cidade do mundo, uma escola. Lá se aprendiam mentiras, se tomavam conclusões que já não eram certas e ficavam piores, se procurava Deus entre tecidos e canos e quase sempre o encontravam numa alucinação ou numa doença. Interagiam gentes e vermes e tomavam-se medidas para sobreviver, instinto único quando não se tem mais nada, a não ser a esperança; mas esperança era coisa vã em Eurídice, e para lá Elleus seguia, como um infante que aos cinco anos segue para a primeira aula e todos os seus descobrimentos. Para lá ele seguia, sem perspectivas, amputado de luzes, aleijados sonhos a melindrar seu comportamento desvirtuado pelas drogas.

 

Providencialmente, não fora relatado aos subalternos, aos guardas, aos capangas, aos políticos menores, a quase ninguém, que o homem preso em Jersey era o filho bastardo do finado Conde, que deixara propriedades, mas, principalmente títulos, e um histórico que o deixava muito próximo da família real. Ao mundo, não interessava mais aquela história, mas, preventivamente, a própria Rainha Catarina, sugeriu em sua extrema bondade e sabedoria que mantivessem preso “o intrometido”, como o nomeou aos risos, para que numa even-tualidade qualquer, o mesmo pudesse ser usado como moeda de troca; ou como entulho.

 

Mas o que quero narrar aqui não é uma história política de reinados que se misturam, pesando sangue para venderem cristais para a fabricação de candelabros e luzes para a humanidade. Danem-se os fatos políticos de fundamentos tão profundos como a minha garantia de que esta ficção, tanto quanto qualquer outra, pode ser real! Além disso, entre tantos mortos a serem enterrados coletivamente, é preferível narrar uma utopia a uma repetição de enredos, onde se relatam arranjos, guerras, casamentos falsos e falhos, conchavos, essas porcarias.

Repetições históricas! O homem é homem em qualquer lugar. Seja no primeiro mundo, no convés, no cais, na alforria da sombra, no pântano, no oásis. A repetição só leva à prática. A prática, à mecanização. É imprescindível ocorrer a falha para haver o aperfeiçoamento e testar a atenção.

 

Na cela, a atenção de Elleus estava na ponta de seus dedos. Cada vez que sua consciência dava sinais de que estava presente, voltando ao normal quando ele retornava da viagem, começava a sentir um formigamento na ponta dos anelares. Ficou assim, como uma moléstia, diagnosticando o que era, até cair em si, e perceber que em Eurídice o cheiro que imperava era de macho, de bicho, de rato, de limo e esgoto, de arroto, de magnésio.

No escuro, quando não se vê, se tateia, e no tato ele foi sentindo pedras, água e urina, ferida e pelos, fezes e dispa-ridade. Num primeiro instante pensou no inferno, depois num pesadelo, tentando acordar. Tentou gritar, a boca sufocada de hematomas não permitia tal luxo. Na dor, o desespero fez esquecer completamente que era homem, descobrindo-se extremo verme, diversidade ínfima de animal. Nesse primeiro contato lúcido não existia Betsiê, nem irmão, nem o chão, nem a mãe, nem os bonecos de madeira, terapia cansada. Existia apenas a certeza de que estava só, uma ferrugem. E que morreria, isso era um aço!

 

Aprender a se acostumar com a dor é tarefa quase impossível. É preciso muita concentração para aprender a contar de trás à frente e não perder a conta, entender que esse é o único passatempo para quem o tempo pra nada existe, a não ser para não se adequar. Se lhe restava esperança? Dizem que este é um sentimento quase divino, uma ligação entre criador e criatura, e esse pressentimento não tinha Elleus.

Na maioria das vezes, as pessoas enxergam Deus na marra, passam a vê-lo nitidamente, pronuncia-se fácil Seu nome, Ele logo aparece numa lâmpada, numa fagulha, saindo da janela, entrando no buraco da agulha, numa tigela, num jardim onde era uma fera a tudo castigar, vindo para o canteiro para lamber nossas feridas. Mas nem isso teve Elleus. Teve apenas medo. Até um cão tem medo! Mas Eurídice haveria de dar-lhe um novo respirar! Não, isso não é uma ameaça criadora, apenas a constatação de quem descobre que seu esqueleto passa a ser apenas uma estrutura óssea que se movimenta por partículas inexplicáveis e se comunica com os neurônios.

 

 

Depois do décimo terceiro dia sem luz, você distingue melhor o escuro. Elleus percebeu, após a melhora no maxilar e do desinchado das gengivas, que gritar apenas cansava! Perce-beu que a máscara que parecia existir na parede, quando ficava inclinado 36 graus em convergência ao chão para pensar nas estrelas, era apenas uma ranhura, uma fenda feita por algum antes condenado e agora morto. Ele descobriu que nem todos os detentos eram bons, como a maioria ali presa. Uns porque defendiam que Santa Catarina e Nossa Senhora de Alexandria eram merecedoras de preces, outros porque acreditavam que não se devia acreditar nessas besteiras. Entre os cristãos, que tiveram que aprender na angústia que católicos e protestantes eram todos iguais – pecavam do mesmo jeito – também tinha dois escravos, cinco pederastas, um exibicionista e cento e noventa e cinco devedores de impostos. Entre os cobradores de impostos, é mais justo o assassino que o inadimplente.

 

Reconhecer-se no escuro fica evidente pelo tempo de poder analisar-se. E esta análise dava a Elleus a impressão de que morreria no segundo seguinte. Esta era a sua descoberta. Essa ansiedade! Esse não aceitar as regras. Esse prendimento que tinha com a faculdade das pernas em correr. Mas por onde andava Betsiê? Ela, a medida dos dias, ia ficando cada vez mais lenta e pesada! Ela aparecia como uma vela, e como vela, apagava-se. Elleus, se pensasse nela, tenho certeza, naquele momento teria pensado nela desse jeito!

Na solidão da cela, na pedra fria da hora, ele recebia água numa casca de abóbora e pão numa folha de manteiga. Vitimado pelo vício, não sabia ele qual necessidade maior, se a fome, a mulher ou a erva. A fome lhe atazanava a memória e a força. A mulher lhe atacava o presente dando expectativas de nada, ao não vê-la. A erva lhe inseria a semimorte. A compulsão aumentava quando parecia cessar. A abstinência fazia-o cheirar a ponta dos dedos, os pés, comer feridas, até cansar-se, até ver vencida a fome e a lembrança da amada, todas as coisas boas boiando no seu mar de teimosia em preferir um cálice daquele demônio escorregadio pelo esôfago, a um hálito de saliva da boca da mulher que amava, em sua garganta.

Correspondendo-se com a feiura, Elleus se fortalecia parecendo magro, com os músculos do abdômen mais evidentes, dando as primeiras noções da nova estética. Um dia, ao passar pelos bosques de Lyon em temporada de caça, a Duquesa Marion, de Nice, costumeira confidente da Rainha Catarina, soube do prisioneiro e resolveu divertir-se ao vê-lo um animal, como num circo. Na portinhola da cela, ela pediu que ele se aproximasse da luz. Aturdido pela fotofobia, agarrou a Duquesa pelo pescoço, pensando que ela fosse Betsiê. Entre eles a porta. Deu-lhe então o beijo mais intenso que ela havia recebido! Acostumada com lavanda e sândalos, e defronte um monumento primitivo, ela passou dias a escovar-se, lavar-se e a lamber-se, ao imaginar o que faria aquele homem com ela de quatro.

Por agarrar-se nas sombras, Elleus um dia teve muitos pesadelos! Cada um deles o acordava mais assustado. Crianças berrando, tratos sendo rompidos, céu escaldando, olhos derre-tendo! No último, viu Betsiê caçoando das cobras que lhe picavam, das ostras que caíam sob a cabeça e lhe rasgavam a pele com uma areia ácida. Ele gritou tão alto, que acordou para a realidade de saber o tamanho da importância dela. Depois de quatorze dias é que lembrou que ela estava desprotegida em algum lugar, colhendo chuva, vestindo ventania, precisando dos seus braços, julgando ter sido abandonada, procurando saída, à míngua, à porta de saída, num lugar onde Shakespeare talvez não mais a visse, ou não mais quisesse.

O grão de beleza, a força da luz, a energia da mulher em algum canto da praia, tendo pesadelos acordada, entenderia a distância aquela hora? Estaria perene a lembrar-se dele, a ocultar as mãos entre os cabelos quando no auge da viagem começava a ver pessoas inacabadas e convés de estrelas?

Naquela hora Elleus caiu por terra. Foi a primeira vez que percebeu que era um refém, um condenado, um indefeso, um viciado, um esquecido, um percevejo. Gritou à porta, ela não respondia. As paredes mantiveram-se caladas. As pedras, ali não rolavam, eram empilhadeiras. Não respondia ninguém. Nem escutavam. Não escutaram o grito. O seu pedido de socorro. As duas cordas vocais arrebentando. A voz ficando ausente. A rouquidão ameaçando o silêncio, até alcançá-lo, até lançar Elleus no Mar Cáspio e suas lendas, que eram seus pensamentos.

Dentro de Eurídice, ele se recriava. Era um homem pó, coberto pela fuligem das chaminés que adentrava as frestas. A sujeira é invisível no escuro. A claridade esconde a poeira na sombra. Mas se o vissem sem metáfora, era um corpo marrom esculpido na noite. Como se voltado ao pó antecipadamente, ele transformava-se.

Lambia a lágrima quase doce de saudade ao perceber que tinha alma, e cansado de pensar não tê-la, teve como companhia àquela noite um vaga-lume, e pensou comê-lo para se iluminar por dentro, mas os frágeis fótons que davam a luz a um inseto tão pequeno estavam mais fortes que ele, e ficaram ali, a noite inteira, clareando pequenas pontas de minúsculos pontos, enquanto Elleus, não sabendo se era dia ou se era noite, só reconhecia no breu seus pés e as mãos, e isso porque não era estúpido.

 

Três dias depois:

 

Dormir cansava. O corpo só o fazia por urgência, ou violência. Novos pesadelos. Alegorias de negras cores. Vermelho negro, azul preto, verde escuridão! Na agitação do corpo pelos sustos, sobrou ao vaga-lume transformar-se em vítima, e naquela ocasião, Elleus pensou ser assassino, com o inseto dando a última fluorescência entre a parede e o córtex. Ele, que nunca acreditou em Deus, chorou, e no pranto pareceu sentir uma música, algo que só ele ouvia, uma sensação de quem escreve uma poesia quando escorregou, ou canta na chuva quando está gripado. E ao sentir a música Elleus pensou estar sentindo Deus. Mas logo fez um desacordo com a cabeça, sorriu de olhos tristes, e pensou “Isso não é Deus, é só uma loucura”! Pressentira que não podia ter desvendado esse mistério logo em seu primeiro contato.

 

Dois dias depois dos três:

 

O tempo não passa para quem está preso, ele te ofende. Irrita-te. Monopoliza a sensação de resguardar-se, até fazer da boca um mero instrumento de reclamação. Num momento o silêncio cria em você palavras, o escuro mostra a você imagens, e vendo como veem os cegos, os outros sentidos evidenciam-se. Tudo fica mais sensível, suscetível ao melhoramento da língua, do som, do aperto, da fragrância podre de Eurídice. As dores corrompendo as vontades iam devolvendo a Elleus a compreensão de que, ao abster-se do veneno do chá, retornava ao veneno dos seus questionamentos tão perturbadores quanto, porém mais sinceros. No esconderijo do escuro, ele começava, ali pelo vigésimo dia, a não sentir mais tanta falta da sua felicidade instantânea e fatal do elixir; isso aumentava nele a vontade de corresponder-se com seu outro vício: a mulher.

Foi neste dia que adentrou na cela, aos empurrões, como uma praga, alguém que deu-se o nome de Flamboyant. Um francês capturado por ter negado a ordem da igreja por excomungá-lo. Sem lugar na terra, ou no céu, a sua descida ao inferno tinha sido mais rápida que imaginava em toda sua introspecção de pecados.

 

– Dizem que Deus me pune! Será que os outros animais são ignorados? Não adianta cercarem-me nesta jaula. Eurídice será a minha redentora! Senhora da justiça, dama da misericórdia! Sabe quantos prisioneiros saem das prisões, ilesos? Nenhum! Bando de covardes! Adentram-me no escuro, não sabem o quanto aprendi a me virar nas trevas! Nas curvas do arrependimento, ou da dúvida, quando cometia meus delitos, quando eu, detento da escravidão das doutrinas, jamais pude ousar afirmar meus pensamentos diferentes. Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Nada tenho a oferecer senão a minha sacrossanta vida humana, seus miseráveis. Não vou calar, continuarei esperneando, afrouxando a voz, economizando ecos para que convençam-se, dia a dia, que não estarei morto. Aqui do escuro enxergo o sol. Ele atravessa as paredes, infiltra-se de cores roxas nos meus olhos, cria umidade no limo dos olhos. Estou nesta prisão porque tive a coragem de entrar na igreja depois de excomungado. Cadê o perdão divino na curvatura da fronte do vigário? Quem pensa que é este infeliz que não sabe que condenar um homem porque ele não acredita em imagens de barro é desvalorizar o comércio, e o comércio gente, é de Deus? Tirem-me daqui!

O homem calou com um murro. Pensando estar sozinho não reconhecia o incômodo. Elleus, angustiado de abstinências de todas as partes, preferiu abatê-lo que conviver com outro declínio. Eurídice transforma! Em poucos dias, Elleus reconhecera Deus na ínfima luz de um inseto, alto grau de sensibilidade, morria na ausência da mulher, quase ignorava as ervas e sua necessidade, esperneou e descobriu que não adiantava, e descobriu que a violência nasce quando o isolamento faz todas as sombras parecerem um monstro.

Só não sabia ele que num só golpe derrubaria o velho, e na queda, ele fosse de encontro à morte. Tentou reanimá-lo, mas na fúria, achou melhor o homem morto que insano, ou ambos mortos como imaginava. Já não fazia diferença o acidente, mas de certa forma, o alívio de ter-lhe oportunizado a liberdade e, assim, ofertado a si mesmo o silêncio. Foi a segunda vez em Eurídice que Elleus pensou em Deus a observá-lo. E parecia àquela hora medi-lo, pesá-lo, vigiá-lo, analisa-lo, crê-lo. Elleus acreditava que Deus cria que ele era cria da fatalidade, se realmente ele existisse, senão não teria oportunizado, pelas suas mãos, a dissolução de pelo menos um de seus problemas.

O narrador sem palavras quer interferir, recusa-se a ditar os clichês que são escritos: Homem aturdido e descrente encontra na prisão a força da transformação e se salva. Calma! eu digo a ele. Fazer clichês é a oportunidade de dar ao leitor a garantia de sentir-se sábio ao finalizar com “Eu não te disse? Eu já sabia”!

Quem nada sabia em Lyon era o povo e seus costumes. Se existisse morte na praça, festa! Se existisse esquartejamento, festa! Se a Rainha, do cavalo caísse e se aleijasse, festa! A sombra na escuridão nada alimenta a não ser o escuro. E quem menos sabia, antes de tudo, era a personagem mais inteligente da história, – digo da conhecida, e não desta aprendida agora – pelo menos o mais admirado, o grande mestre, o criador, aquele que tem poucos retratos, mas que passou aqueles dias com a família em Lyon em aventurar-se nas artes plásticas.

Entre Vieux Lyon e Saint James, Willlian Shakespeare ia deixando um rastro de esperança, agora sob a comenda do Rei da Inglaterra para divertir a corte francesa. Preparava uma peça para apresentar na cidade e, arrecadando fundos, voltaria finalmente para Londres, já sem perigos de contágio com a peste, evaporada pelas mãos divinas através da igreja como dizia um santo ofício católico!

 

Tentavam refazer a vida numa outra estrada. Restada a preocupação com Elleus e Betsiê, sobrava motivação para novas empreitadas. Apesar de ter passado a amar, o autor não tinha se tornado estúpido, e detinha essa categoria que parecia esnobe ou egoísta de saber separar o que era vital e o que adoecia. Shakespeare sabia peneirar, antes de tudo! De posse de novas ideias, novos compromissos com a casta rica da sociedade de Lyon o impeliam a preparar um evento grandioso para o casamento da Duquesa Marion, de Nice. Confabulados, Shakespeare, Anne e Delphin discutiam uma apresentação espetacular; afinal estava em jogo uma grande quantia em títulos para erguerem um teatro nas redondezas de Chartres. Foi resolvido então, a pedido da duquesa, que adorava a história da Grécia e tinha uma casa em Santorini, que seria montada a peça Hades, onde Anne Shakespeare representaria Orfeu e Delphin, aos prantos quando soube, seria Eurídice.

Tentando dar outras possibilidades imaginativas a cada capítulo, vou relatando diferentes enfoques aos seus subtítulos. Aqui, em Eurídice, trafega-se por uma prisão e por uma personagem clássica. Ambas mitológicas! Ambas subjetivas! Ambas tão irreais que parecem conviver conosco! Em Eurídice, Elleus mantém-se preso para que as outras personagens ganhem destaque enquanto ele se modifica. Shakespeare volta a ser soberano, e Delphin, quase uma intriga, delicia-se entre costurar e bordar e decorar e impostar a voz para dar à sua Eurídice, a sua personalidade, o seu enfoque ao texto ágil e certeiro na adaptação de Willian Shakespeare.

Entre os ensaios, davam-se os preparativos. Cenários, papel em flor, trigo e amarelo, ouro disfarçado em lápis e grafite em diamante. Mãos rápidas, olhos corriqueiros, entra e sai, nervosismo, demora, ensejo, essas coisas que permeiam os ensaios e antecipam-se à estreia, como o grande ápice, o momento em que o ator mostra que é humano e erra, e corrigindo aperfeiçoa, e se no palco quebra, sobra-lhe ilumi-nação!

É nos ensaios que se aperfeiçoa a fala, que se descobre a frase, se descortina a imagem, se manifesta o ideal. Foi num desses ensaios que descobriram que à majestosa festa seria necessária a pompa, e para isso, foi disposto à família todas as regalias para fazer de Hades, um espetáculo inigualável, para a apreciação de todos os convidados, os mais ilustres da França; uma oportunidade única de todos engrandecerem-se. Além das costureiras enviadas para produzir os figurinos desejados por Willian e imaginados por Delphin, foram enviadas rendas, cristais da Áustria, fogos da Antuérpia, vinho de Portugal, flores de Amsterdã. Para a aniversariante, foi prometida uma carruagem, um castelo na Catalunha, um autorretrato de algum renascentista despontando, e os maiores adornos vindos do Oriente. E para enfeitá-la, torná-la flor, álibi da inocência, foi convocada Catherine McFlower, que, morando em Lyon sob a tutela da rainha, alterara seus planos de voltar a Jersey, depois de ter ganhado de Catarina de Médicis, um casarão para construir o primeiro hospital da França que atenderia católicos e protestantes, com o perdão da rainha por suas incoerências, desde que depois, se curados, convertessem-se ao catolicismo.

 

Estavam no ensaio Anne, Cristel, Willian, o espaço e o tempo, e as cabeças a produzir perguntas, quando uma mulher de 1,52 e um sol sobre sua fronte, adentrou ao galpão perguntando pela Duquesa Marion, que havia combinado horário para acertar todos os detalhes: recepção, presente, peça, congratulação, roupa, maquiagem, longe dos olhares da côrte e dos súditos, e próxima de Anne, com quem havia simpatizado e dava a rir-se de suas brincadeiras.

 

  • É ou não é você a pessoa mais feliz do mundo? – perguntou Shakespeare exclamativo, dando sequência a um batalhão de perguntas de todos os presentes, de forma natural, a rirem-se.
  • Sou uma privilegiada, senhores! Trato de doenças!
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