Histórias pitorescas de São Francisco do Sul

O naufrágio da barca Francisca

Naufrágios fazem parte da história desde que o homem inventou a embarcação como meio de locomoção e de conquista de novos espaços. Por avarias, acidentes naturais ou afundamentos programados por inimigos de guerra, o fato é que os mares mais navegados são também os maiores cemitérios de navios naufragados.

Segundo registros, a costa catarinense abriga mais de cento e sessenta embarcações naufragadas, nacionais e internacionais, várias delas nas proximidades de São Francisco do Sul.1 Um dos naufrágios que ficou na história foi o da barca Francisca, que partira do porto de Hamburgo, Alemanha, em 20 de julho de 1858, chegando a São Francisco do Sul em 21 de setembro daquele ano. Ao adentrar a barra, a Francisca encalhou num banco de areia do Sumidouro e em seguida afundou. Além da tripulação, havia a bordo quarenta e nove passageiros, imigrantes, cujo sonho era iniciar nova vida na Colônia Dona Francisca.

Somente três dos passageiros morreram afogados. Os demais foram salvos, graças ao empenho e à coragem de alguns deles, que conseguiram estender um cabo, da embarcação até a terra, por onde os passageiros se deslocaram até o solo firme, uma vez que as âncoras de emergência e os botes de salvamento também foram inutilizados pela fúria das águas.

Um dos companheiros solidários foi Johann Otto Ludwig Niemeyer (conhecido como Louis), jovem engenheiro e tenente da Armada de Hannover que, alguns anos antes, viera conhecer a Colônia, e nessa viagem trouxera seus sonhos e projetos de vida que pretendia desenvolver na nova terra. Porém, pelas repetidas vezes que Niemeyer entrou e saiu do mar gelado para salvar passageiros, contraiu uma doença que o levou à morte aos quarenta e oito anos. Sua curta permanência neste mundo foi o bastante para ser reconhecido pelos seus feitos na Colônia Dona Francisca, da qual foi diretor.2 Entre outras homenagens, sua memória foi perpetuada através do nome de uma rua, hoje rua Luís Niemeyer, onde se situa o Palacete Niemeyer (Banco do Brasil), que foi a residência do engenheiro.3

O naufrágio da barca Francisca nunca foi bem esclarecido, até que o Arquivo Histórico de Joinville obteve a cópia de uma carta escrita por Ida Günter Doerffel, esposa de Ottokar Doerffel (então tesoureiro da Colônia Dona Francisca) à sua sogra residente na Alemanha, logo após o acidente. Traduzida pela historiadora Elly Herkenhoff mais de um século depois, a carta trouxe à tona detalhes sobre o trágico acontecimento no mar. Na carta Ida relata que

a embarcação, além da volumosa bagagem dos passageiros, trazia grande quantidade de carga destinada à cidade de Batávia, na Ilha de Java. A tragédia aconteceu à noitinha e os sobreviventes tiveram que passar a noite à beira mar, em meio a vegetação hostil, de ananases com espinhos cortantes. No dia seguinte, cacos da barca, caixões, vestidos, móveis, objetos de decoração boiavam sobre as ondas. Até dois pianos (um de cauda) estavam semienterrados na areia. Nas encomendas para a Batávia encontravam-se caixas com tecidos, couros, além de trezentas caixas de vinho. Os moradores das proximidades, sob o controle da Guarda Municipal de São Francisco, por vários dias “pescavam” objetos trazidos até a orla pelas águas. “Mas os camaradas estavam constantemente bêbados, ingerindo o vinho transportado pela embarcação sinistrada”.

 

Ida Doerffel conta em sua missiva que

o senhor Niemeyer, que aqui esteve há alguns anos e voltava nesse navio, trazia mais de trezentas caixas de objetos diversos, em parte para uso próprio e em parte para muitas outras pessoas. “O mais lamentável é um prelo completo, cuja perda é particularmente dolorosa para o meu marido”, referindo-se ao maquinário encomendado por Doerffel para instalar um jornal impresso na Colônia. A perda do equipamento atrasou o lançamento do primeiro periódico impresso na região, o Kolonie-Zeitung, que aconteceu  somente em janeiro de 1863.4

 

A história do naufrágio da barca Francisca permanece na memória de francisquenses e joinvilenses, contada de geração para geração como uma das maiores tragédias da época. Segundo a tradição oral, os passageiros eram de nível econômico privilegiado pela bagagem que traziam, toda ela tragada pelo mar..

 

O meteorito “Santa Catarina”

 Não fosse a divulgação no jornal O Município, de uma reportagem sobre o trabalho do estudioso francisquense Beneval de Oliveira, Geologia, Petrologia e Geomorfologia da Ilha de São Francisco do Sul, provavelmente não entraria na história do Porto de São Francisco do Sul a exportação de nada menos que vinte e cinco toneladas de metal proveniente de um meteorito, no final do século XIX.

Poucas pessoas tinham conhecimento da queda de um meteorito em solo francisquense, até lerem a respeito no jornal O Município, de 14 de janeiro de 1961. A pesquisa realizada por Beneval de Oliveira atesta a existência de material meteórico na região, do qual pequenas amostragens constariam do mostruário da Divisão de Mineralogia da Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

No seu estudo Beneval menciona o artigo Notas sobre Meteoritos Brasileiros, do geólogo e paleontólogo Orville Derby, publicado na revista Observatório do Rio de Janeiro de 1888. Este anunciava a descoberta do meteorito em São Francisco, atribuída a Manoel Gonçalves da Rosa, no ano de 1875. Em seu comentário, admira-se o autor do artigo do incrível desconhecimento da população local sobre a existência desse inusitado fenômeno nas proximidades do centro da cidade.

Manoel Gonçalves da Rosa, ao descobrir o que julgava tratar-se de uma mina de ferro, teria requerido a concessão e enviado amostras para a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde foram analisadas em 1876, pelos professores Gugnet, Damour e Osório de Almeida. Dada a importância do material, os cientistas publicaram uma notícia a respeito nos Comtes. Rendus (publicações científicas) de 1876.

Porém, o concessionário da mina, sem esperar o reconhecimento do material e o grande interesse científico a respeito, explorou o suposto depósito de ferro até o total esgotamento. Retirava o minério em blocos e o quebrava em partes menores para facilitar o deslocamento. Registrou que o bloco maior chegou a pesar 2.250 quilos. O próprio Rosa teria informado aos cientistas que no livro da Mesa de Rendas de São Francisco do Sul constaria o registro da exportação de vinte e cinco mil quilos do metal para a Inglaterra, através do Porto de São Francisco. Vendido como ferro, porém pela dureza do minério constatou-se ser níquel puro, cuja fundição só foi possível com o emprego de energia nuclear.

Para Orville Derby era importante que o Museu de Mineralogia da Escola Politécnica do Rio de Janeiro tivesse maior conhecimento sobre a topologia e geologia do local em que teria caído o meteorito. Assim, em 1884 enviou a São Francisco do Sul o cientista Luís Felipe Gonzaga de Campos para uma minuciosa busca de informações e provas sobre o fato.

No seu relatório, divulgado na revista Observatório em maio de 1888, Campos revela que o sítio em que foram encontrados os fragmentos de ferro – batizado de Morro da Mina pela população local, em função do enorme buraco causado pela queda do meteorito –, situa-se a quatro mil e duzentos metros distante do centro de São Francisco do Sul, na localidade conhecida como Rocio, na encosta de uma elevação de cinquenta e oito metros, próximo a um córrego que deságua na Baía da Babitonga. O cientista encontrou fragmentos ferro-niquelíferos a três metros de profundidade e já alterados pelo tempo, com elementos de granito aderidos à sua massa.

As conclusões de Campos definem a natureza geológica local como gnaise-granítica, sem um aforamento de racha básica que servisse de orientação, tese confirmada por pesquisas posteriores. O solo de todos os morros existentes na região do Rocio Grande, afora pequenas variações, tem essa composição mineral. Endossando as impressões do cientista, Beneval de Oliveira conclui que os fragmentos ferro-niquelíferos encontrados têm realmente origem sideral; portanto, são resultantes de autêntico meteorito.5

As amostragens do meteorito, mais tarde denominado de Santa Catarina, não só estariam presentes na Divisão de Mineralogia da Escola Politécnica do Rio de Janeiro como figuraria nas principais coleções de meteoritos do mundo. Um dos primeiros a apresentar trabalhos sobre o “Santa Catarina”, teria sido o próprio Imperador Dom Pedro II, na Academia de Ciências de Paris. E, em vista da importância dada àquela descoberta, o Imperador, a partir de então, tornou-se membro e correspondente daquela instituição de pesquisas científicas.6

 

Cartolas e gentlemen

São Francisco do Sul, desde a sua fundação contava entre seus habitantes com pessoas oriundas de outros países que, ao lado da elite local, se sobressaíam pela sua cultura, educação, cavalheirismo e forma de trajar. Um deles foi  Roland O´Neill Addison, imigrante inglês na primeira década do século XX, que fixou residência na cidade.

Conhecido como Mr. Addison, era proprietário da Agência de Despachos Marítimos Addison e representava várias armadoras britânicas. Entre estas a Booth Steamship Co. de Liverpool, que a partir de 1919 instalou uma linha regular de vapores, a cada seis semanas. O primeiro navio da companhia foi o Dominic, que fazia escalas em vários portos brasileiros para troca de cargas.7

Mr. Addison destacava-se dos demais cavalheiros da época pelo seu porte conservador e principalmente pelo impecável terno de linho branco, complementado com um alinhado chapéu  panamá.

Por volta de 1912, a figura singular de Mr. Addison passou por uma transformação quando foi nomeado Vice-Cônsul da Inglaterra, função que desempenharia por mais de quarenta anos. Ao assumir o posto diplomático, o sisudo inglês passou a adotar um novo estilo de vestir. A partir de então o seu figurino constava de calça preta listrada, fraque e colete pretos de casimira, camisa branca de colarinho engomado e para completar, gravata borboleta preta, cartola e bengala.

Respeitos e mesuras à parte, decorrentes de sua origem e função diplomática, Mr. Addison possuía também alguns desafetos na cidade. Um deles era o alemão Bernardo João Truppel, que atribuía, mesmo que de forma indireta, ao cônsul inglês a responsabilidade de sua empresa haver sido inserida na lista negra durante a Primeira Guerra Mundial, um ato de pressão por parte da Inglaterra e dos Estados Unidos, contra centenas de companhias marítimas no mundo, para impedir o abastecimento dos países do Eixo.

O clima de mal-estar entre os dois senhores era de conhecimento dos moradores, que lhes observavam as reações, quando estes cruzavam seus caminhos nas ruas de São Francisco. “Eles vão se agredir com a bengala”, ouvia-se dos que faziam tempo pelas esquinas. Porém Addison e Truppel, apesar da inimizade ideológica mantinham a postura, comportando-se como perfeitos gentlemen. Limitavam-se a levantar a cartola, gesto seguido de um reverente e bem posto cumprimento, como convinha à sua posição de cavalheiros.8

( Do livro “História do Porto de São Francisco do Sul, publicado em 2005)

 Site naufragios.com.br/scatarina_mdf.htm. Acessado em 17.11.2005.

  1. HERKENHOFF, Elly. Era uma vez um simples caminho…Fragmentos da História de Joinville. Fundação Cultural de Joinville, 1987. p. 127/130.
  2. BÖBEL, Maria Thereza e S. THIAGO, Raquel. Os Pioneiros I – Documento e História 1851-1866. Joinville: Univille. p. 309
  3. HERKENHOFF, Elly. op. Cit. P. 127/130.
  4. O MUNICÍPIO: São Francisco do Sul, 14 de janeiro de 1961.
  5. http//www.csfs.sc.gov.br/vereadores/história.htm.
  6. ADDISON, Harry. Depoimento [1.7.2005]. Entrevista concedida a Nelci Seibel.
  7. OZÓRIO, Jucemar. Depoimento [1.7.2005]. Entrevista concedida a Nelci Seibel.

 

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