Joinville, a Lyra e o Quixote (Ronald Fiuza)

 

Joinville, a Lyra e o Quixote

 

Talvez eles nem soubessem, mas o fato é que seus antepassados haviam discordado muito sobre a construção de um teatro de ópera em Hamburgo, no século 17. Os luteranos queriam o teatro, mas os pietistas não o desejavam. Imaginavam que aquele seria um local impuro, voltado aos prazeres mundanos. A votação decidiu e a Staatsoper Hamburg foi construída.

Aqui em Joinville, quase dois séculos depois, os alemães que vieram daquela mesma cidade fundavam uma entidade semelhante àquela casa de óperas. A Harmonie, também nasceu para oferecer diversão aos sócios, com teatro, música, canto e dança.

É que a “alta cultura” já estava impregnada no espírito daquela gente. Depois que a Grécia Antiga nos legou a literatura, o teatro e a filosofia, os europeus não mais se contentaram com a cultura popular. A ambição era por produtos artísticos de grande primor técnico, que visassem a beleza refinada e contribuíssem para o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade.

Mesmo adormecida durante a longa Idade Média, tal tendência ressurgiu com força no Renascimento, quando as artes plásticas acenderam um rastilho que incendiou a Europa. A literatura explodiu com a prensa móvel, trazendo Shakespeare, Dante e Cervantes. Na música, Bach e depois Mozart encantavam, magnetizavam as plateias.

E foi impregnado por este caldo de cultura que embarcou em Hamburgo um grupo de pessoas para recomeçar a vida do outro lado do mundo. Os passageiros do navio “Graciosa” eram diferentes daqueles pioneiros que, meses antes, fundaram uma colônia no sul do Brasil. Este navio carregava um grupo de profissionais liberais, como engenheiros, médicos, advogados, teólogos e outros. É provável que tivessem tido acesso maior a atividades culturais. Quem sabe alguns deles já tivessem assistido a um “Don Giovani” na Staasoper. O fato é que queriam algo parecido em sua nova casa. Veio a Harmonie. Deu certo.

Os séculos passavam, as artes mudavam. O classicismo abria espaço para o romantismo e Mozart dava boas-vindas a Bethoven. Em Joinville o entusiasmo crescia e, já no século 20, a união da Harmonie com outra entidade animada deu origem a uma terceira, ainda mais ambiciosa: a Sociedade Harmonia-Lyra. A comunidade entusiasmada mergulhou no projeto. Logo foi erguida a grande sede, até hoje motivo de orgulho. Surgira um verdadeiro palácio da cultura.

Entretanto, uma mudança estranha estava por vir. O modernismo chegou com estardalhaço, rompendo com a arte do passado e abrindo um espaço estranho para a liberdade criativa. Acabaram as restrições de estilo ou de regras. As pessoas ficaram perdidas. Sociedades como a Lyra oscilavam entre sua vocação erudita e as quebras de barreira. Foi se modificando.

Já mais para o fim do século XX a Lyra acabou se transformando em uma casa de entretenimento. Lá ocorriam eventos e encontros, como peças de teatro, exibições musicais, formaturas e solenidades. Havia também horas dançantes e um ótimo restaurante, muito apreciados pelos sócios. Entretanto, mesmo estas atividades foram diminuindo. Foram minguando. O restaurante só abria para eventos, a sede foi se deteriorando. Parecia fadada à extinção.

Entretanto, assim como o Renascimento despertou os europeus da hibernação da Idade Média e trouxe artistas como Cervantes, nós também tivemos o nosso Dom Quixote.

E não foi um descendente dos pioneiros que ajudou a Lyra a despertar de seu sono prolongado. Foi um gaúcho, que adotara Joinville como sua casa. Culto, amante da ópera e da música clássica, ele não se conformava com a visão de uma entidade tão significativa se apequenando. Olhava para aquela bela sede se arruinando e não aceitava.

E se movimentou. Patrocinou concertos, trouxe canto lírico, buscou ópera. E mais, convidou o balé, fez renascer os Cantos de Natal. Pensou até na literatura e abriu as portas para a Academia. E, agora, tornando ainda mais concreto o seu grande projeto, buscou patrocínios e faz renascer a sede, ainda mais bela.

Luta sim, contra os moinhos.

 

Minha homenagem ao amigo Álvaro Cauduro

Ronald Fiuza

 

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