Laranjeiras do Iguaçú

Laranjeiras do Sul – outrora pujante capital do território do Iguaçu -, é dessas cidades com eterno ar de nostalgia. Algo que era para ser e ficou a caminho.  Evoca Stambul de Orhan Pamuk.  Embora Bizâncio tenha sucumbido, Stambul sucedeu-a, e de forma grandiosa. Mas a nostalgia assentou raízes, impregnada na paisagem que insiste em se reapresentar. Em Laranjeiras faces opostas contrapõem-se: a alegria de ser capital e a irreparável tristeza – a perda.  Ah quem, no entanto, pondere: quem foi rei nunca perde a majestade. Em parte, é verdade; e em parte há um rastro sorrateiro que teima em não se apagar na poeira do tempo.  Se continuasse capital, certamente, seria uma metrópole regional. Sem essa perspectiva, deu meia volta no tempo; eterno lugarejo cravado no universo colonial. As largas avenidas, o traçado geométrico; é o que percebe o visitante.   Passagem obrigatória de quem vai para o grande oeste, resignou-se condoída, à margem da rodovia, e sabe-se lá por que razão ganhou fama de violenta. Uma das vilas Cantagalo, celebrizou-se… Cantabala para forasteiros.

Desapareceu o Território, nunca a saga dos colonizadores. Obstinados, adentraram aos sertões sulinos logo após o descobrimento. E, como aves arribação, foram se espalhando pelas matas e ribanceiras. A esses abnegados devemos inestimável legado: as alargadas fronteiras nacionais.

Ao adentrarmos a cidade, o troféu maior – visível rolo compactador exposto à visitação no trevo de acesso. Monumento ao progresso, preserva a memória de feito épico – a chegada do asfalto.  Conservado – pintura avivada -, parece rodar na rodovia BR 277 de todos os tempos: estrada de chão, depois asfalto – eterna rodovia da madeira, depois da soja, mas sempre estrada dos homens – a grande estrada.  A máquina aos trabalhadores, operários, mestre de obras, engenheiros.  O tempo perpassa gerações.  Gente simples e humilde, destemidos filhos do acaso.  Não há prédio, não há rodovia, não há escola, não há hospital, não há avenida; nada se ergue sem a força desses heróis anônimos.

As pirâmides do Egito falam ao tempo; ali camponeses – pequenos camponeses, cultivadores às margens do rio Nilo, deitaram pedras seculares. E as deitaram para a posteridade. Pirâmides à parte, falo de Laranjeiras do Sul, modesta cidade cravada no planalto sul paranaense. A abriga enorme malha de basalto, derrame ocorrido há 65 milhões de anos e que se desdobra desde o oeste paranaense, e abarca o arco da fertilidade que vai de Santa Catarina a São Paulo. Chamada terras velhas para os pedólogos, terra rocha para os colonos, terra vermelha para a dona de casa, e terra abençoada para os plantam – tal a vigor das plantas ali cultivadas.  Observam-se as rochas em fase adiantada de intemperismo em Laranjeiras e adjacências, mas mais adiante só resta o solo – horizonte profundo, metros e metros de boa terra.

Nestas plagas várias são as etnias presentes: poloneses, italianos, alemães, e outras tantas. Esses pioneiros ao se estabelecerem, gradativamente, superaram dificuldades sem precedentes: lavoura de toco, remoção de escombros, muito esforço e pouca recompensa, e reconhecimento nenhum. Como dizia meu velho pai: Quanto trabalho, e nem dava pra polenta.  Persistentes legaram-nos a Laranjeiras moderna, sóbria e hospitaleira. Nos momentos amargos, recorriam aos céus.   Igrejas distribuídas por todo o povoado comprovam; muitas são as Nossas Senhoras presentes: Aparecida, Perpétuo Socorro, Fátima, Auxiliadora, Salete, mas sempre Maria, Mãe de Jesus.    Igrejas, Santuários, Capelas e Grutas ocupam lugares adrede preparados e, como estrelas veneradas, brilham.

Á medida em que avançamos percebemos a cidade, a boa sinalização, placas nos lugares certos, muito capricho.  Os canteiros ajardinados chamam a atenção de Ângela que vai identificando as espécies: éricas lilases, agave rosa, boca de leão, amor perfeito, entre outras tantas. Ruas arborizadas, galhadas bem conduzidas, folhas vigorosas, expressam a força da terra, o clima saudável. Ligustros e aroeiras predominam.  Seguimos, e que agradável surpresa: suntuosa Igreja matriz desponta sobranceira. A impecável praça, colorida, revela bom gosto. Dona Sonia, que nos acompanha, não vê a hora de chegar à residência dos mais novos cidadãos laranjeirenses.  E sem maiores delongas batemos à porta de Alexandre, agora Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul, de Cris, simpática jornalista, e Pedrinho, o mais novo rebento dos Serpa Zabot. Como há outros visitantes, pernoitamos num modesto hotel, ao lado da praça principal. O velho casarão conserva ares nostálgicos. Fazem questão de informar que se trata de ambiente familiar.

De manhãzinha – mês de abril, ano 2010, domingo de Páscoa -, antes do nascer do sol, parto para o costumeiro Cooper.  Os pontos cardeais confundem-me, imagino estar seguindo rumo a oeste, e na verdade sigo para leste; o sol desponta na colina. Demoro um pouco para me situar. Vem-me há mente o tempo escolar: face para o norte, braços estendidos, direito para leste, esquerdo para oeste, costas para o sul.  O asfalto finda, surge o calçamento: pedras anguladas, irregulares; é o basalto de fio cortante empregado sem modéstia para melhoria de ruas. O solo extremamente argiloso, molhado, torna-se enfadonho ao transeunte, grudando no calçado forma monturos que custam a soltar-se. Daí talvez a razão de o calçamento, mesmo com pedras duras e cortantes, ser acatado como uma melhoria significativa. E, é claro, na estiagem, evita o pó que facilmente se ergue tomando forma de nuvem avermelhada.

Ao alto, á leste, vislumbra-se uma seqüência de escadas ascendentes. Os passos largos – alguém passa – caminha apressadamente. Embaixo, ao sopé da colina, uma construção surpreendente: colunas gregas a sustentá-la. Parece uma loja maçônica, mas não é. O segurança informa ser a futura casa de cultura. A escadaria conduz ao cruzeiro, ao alto, onde está estampado: Jesus Cristo sempre: ontem, hoje e amanhã – 14/04/200. A fé parece mover a cidade, e, ninguém dúvida disso. Basta percorrer os logradouros. Logo na entrada o Santuário de Nossa Senhora Aparecida – largas escadarias, apontando para o céu, e outros, muitos outros, todos bem cuidados.

E a nova Universidade, razão de nossa visita, onde se encontra?  Uma placa adrede caprichada aponta: Campus da UFFS – Universidade Federal da Fronteira Sul. No domingo à tarde, ciceronianos por Alexandre visitamos o prédio recém alugado, onde de forma provisória instalou-se a universidade. Ao vistoriar o prédio, percebe-se a coragem dessa gente (tudo por fazer): cortinas, laboratórios. Móveis e carteiras novos exalam cheiro característico. Quanto ao campus definitivo, 40 alqueires de terra foram adquiridos nas cercanias, visando à instalação. A compra coube as prefeituras da região.

Diante de tamanho desafio, encorajamos o jovem Professor, instando-o à luta:

– Filho, coragem!  Todas as grandes obras começam assim – pequeninas. Todo o grande rio surge de uma gota d’água, depois vêem os afluentes e, gradativamente ganha corpo. Assim, com certeza será a UFFS, campus de Laranjeiras do Sul. Nunca se deve subestimar o sonho de uma comunidade e, mais, de uma região.

Alexandre informa que o MST – Movimento dos Sem Terra – tem forte presença em todo o processo de criação da universidade. No Município situa-se um dos maiores assentamentos da América Latina. Curioso, queria visitá-lo, mas o tempo era curto, deixando para outra ocasião. Como amigo de Agnor Bicalho – popular Parafuso – um dos fundadores do MST no país, temos uma idéia do sonho dessa boa gente que tanto luta pela conquista de um pedaço de terra. A tempo vimos alertando, todavia, que não basta apenas a terra, é preciso mais, especialmente agregar valor ao produto e ao território. Caso contrário – a exemplo da agricultura familiar -, terão sérias dificuldades em firmar-se ao longo do tempo. A economia de escala não costuma poupar quem a desafia.

Domingo à tarde, visitamos uma bela praça próxima à rodoviária; ali um conjunto arquitetônico, com corredores em caracol, culmina num globo terrestre posicionado ao alto. Entre os componentes da praça, uma pérola: esplendida quadra de xadrez, com arquibancadas laterais. O gesto de ousadia, sem dúvida, merece aplausos.

De saída, na segunda-feira, ouvimos algazarra de crianças circulando na praça central, repique de tambores. Informam-nos tratar de um festival de fanfarras. As crianças, todas uniformizadas, esbanjavam faceirice.

Despedimos-nos e partimos, não sem antes levar uma dose de saudade. De tudo o que vimos, salta aos olhos a quadra de xadrez na praça. E uma partida inusitada acontecendo (é o que imaginamos): os sem terras movem seus cavalos, a comunidade antiga – mais tradicional -, move seus bispos. Enquanto isso – reis e rainhas, ao fundo do tabuleiro -, protegidos, trocam ares de guerra.  Terçam armas, velhas armas de guerra. E a torcida?  Bem, essa vibra a cada jogada.  O mundo contínuo o mesmo: mudam-se os tempos, mudam-se as idades, e nada permanece senão para a necessária mudança, como diz o poeta.

E, em tempo, parlamentam:

– A partida de xadrez pode terminar empatada, menos mal.   Seja qual for o resultado, Laranjeiras do Sul – a exemplo de outrora -, nunca mais será a mesma; será muito melhor, com certeza. E, capital por capital, que a novas Laranjeiras seja a capital da inteligência, da juventude e esperança.  O século XXI a espera de abraços abertos.

 

Laranjeiras do Sul, 6 abris de 2010

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