Leia mais bulas… Hilton Görresen
LEIA MAIS BULAS…
Hilton Görresen
Dizem que os jovens não leem. Para os que não conseguem ler um livro, tenho uma sugestão: leiam bulas. É uma leitura indicada para jovens, os de meia idade já não conseguem lê-las.
A bula de remédio está inscrita entre os grandes gêneros literários. Em sua essência, trata de um dos maiores conflitos que agita a humanidade: o conflito entre a saúde e a doença, que no final é o grande jogo entre a vida e a morte. Poucos gêneros literários alcançam tamanha altitude ontológica.
Algumas partes desses textos são exemplo de clareza, diretas e concisas: tome um comprimido de 8 em 8 horas. Claríssimo, não? Quem não vai entender? Outras, em compensação, já necessitam de um crítico literário (que seja ao mesmo tempo farmacêutico) para interpretar: o que quer dizer exatamente “sofre ação das enzimas do sistema citocromo P450 onde é convertido, devido à oxidação do grupo 5-hidroximetil, no anel imidazol, em 14% em um metabólito ácido carboxílico ativo…”? Mas se você consegue ler o “Ulisses”, de James Joyce, isso é café pequeno.
Você precisa saber ler nas entrelinhas. Um remédio parece ser para o estômago, mas na verdade foi receitado para o coração. Os indicados para hipertensão curam dor de barriga. Como em outros textos literários, não se fie no conteúdo expresso.
Alguns desses textos se apresentam com páginas e páginas de narração, descrição e mistério. Trata-se de narrativas que, como todas as outras, apresentam uma oposição entre o vilão – a doença – e o mocinho, o remédio apresentado. A obra procura convencer o leitor de que seu problema é curável, mas não se responsabiliza pelos resultados.
Não falta nessa narrativa o núcleo dos subvilões: os efeitos colaterais e as reações adversas. Se for um leitor impressionável, você provavelmente vai sentir todos eles. Ao tratar de uma infecção na perna, poderá adquirir uma tremenda dor de cabeça, tonturas, enjoos, convulsões, batimentos cardíacos. Todo o impacto que um bom livro pode lhe proporcionar.
No final da leitura, permanece o mistério: conseguirá o mocinho vencer o insidioso vilão? Em quanto tempo? Conseguirão os subvilões aterrorizar o ingênuo leitor?
Redigir bulas não é para qualquer escritorzinho. Quando os críticos se conscientizarem de seu valor, quem sabe ainda teremos um “buleiro” recebendo o prêmio Nobel de Literatura. E dia virá em que nos perguntarão: você já leu a bula do Anfilostoman? Está na lista de “best- sellers” da semana.
TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A GAZETA DE SBS EM 07.11.2020