Mulheres – sacos de pancadas

MULHERES – SACOS DE PANCADAS?
David Gonçalves
Antes e depois de Lindalva. Por que antes? O que houve depois?
Mulheres, em Quadrínculo, apanhavam dos homens por um cisco. Eles batiam com gosto e se vangloriavam. Sovavam de relho, de cinta, de bainha de facão. Ouviam-se gritos de socorros na calada da noite. Mas os vizinhos se faziam surdos. Briga de homem e mulher não se mete a colher. Era assim, desde o tempo dos escravos, desde Moisés, desde Adão e Eva. Muitas apanhavam na noite de núpcias.
Homem – a lei, o porrete, o mando, o senhor. Mulher – obediência, serva, parideira, fogão, panelas, tanque de lavar roupa, igreja.
Conversa de homem mulher não palpita. Fica quietinha na cozinha, escutando, temerosa ou enraivecida. Casa em que a mulher manda não se dá ao respeito. Batia-se nelas. Questão de respeito. Matava-se. Questão de honra.
Sucedeu-se, então: Jorjão botou os olhos em Lindalva, filha de um saqueiro do IBC, e se apaixonou. Italianão grosso, robusto – derretia-se só de vê-la levando a marmita ao pai. O amor o deixou leve, sonhador, quase etéreo. A grosseria deu lugar à galanteria.
Deixou de ser brigão. Bestou de vez, diziam. Onde se viu? Um homem troncudo, capaz de nocautear um bezerro num soco, planava em nuvens de algodão. Vivia caçando borboletas. Os amigos não perdoavam: essa mulher há de colocar um chapéu de boi, bem atolado, na cabeça dele.
– Abre os olhos, Jorjão!
Não era qualquer um. Tinha boa terra, tratores, colheitadeiras. Não era um joão-ninguém, um cão caído de mudança. Muitas moças o cobiçavam. Lindalva o espreitava, receosa. Não queria a vida de sua mãe. Pai selvagem, batia na mãe, recriminava-a, humilhava-a. Arrastava a mãe pelos cabelos pelo assoalho, pelo quintal. Pobre mãe. Uma penca de filhos e toda esfolada. Lindalva não queria os olhos tristes da mãe, o rosto envelhecido. Não queria, também, uma penca de filhos desnutridos, sujos, resvalando como porcos no chiqueiro. Não queria um marido igual ao pai.
Estavam apaixonados. Amor, doce mel de abelhinha jataí. Viveram dias felizes. Jorjão prometia um mundo de carícias. Na rua, andavam de mãos dadas, fogosos pássaros. Na igreja, lado a lado, crentes fervorosos. Nas festas, sempre juntos. Haveria maldade naqueles corações? Lindalva o domara? Onde estava aquele homem mandatário? O amor, para eles, nunca havia de virar vinagre.
Nos bares, na conversa de homem, vangloriavam-se as bravatas. Falavam sobre sovas memoriáveis. Surrei mesmo, dizia um, até mesmo sem saber por quê. Mulher precisa saber quem manda no terreiro. Eu também, dizia outro, senão elas trepam em cima, arre. Ora, veja, comentava um terceiro, quis implicar com meus goles de cachaça. Onde se viu? Sou lá homem de ter horário pra chegar em casa? Viam uma mulher na rua e diziam: aquela apanha toda semana. Veja como anda de crista caída. Sabe, mulher sovada dá mais amor. Homem frouxo é desprezado por elas. Assim, os maldosos apimentavam a língua: coitado do Jorjão. Lá, quem manda é a mulher. Que vergonha! Onde se viu galinha mandar em galo? Traz ele na palma da mão. Tudo isso chegava aos ouvidos de Jorjão, que se retraía, um tanto envergonhado. Jamais levantaria a mão pra Lindalva. Tratava-a com delicadeza, presentes, mimos. Sabia das barbaridades sofridas pela sogra. Mas, de tanto o povo falar, resolveu mostrar que tinha as rédeas nas mãos. Aquela gente maldosa teria a resposta.
– Jorjão tem mãos de seda…
Sem mais, nem menos, começou a mudar as peças do tabuleiro. Começou a chegar tarde, um pouco embriagado. Falava alto, ordenante, respondão. Virou às avessas. Arrastava as cadeiras, jogava as panelas no chão, socava a mesa.
– O que aconteceu, benzinho? O que te amargura? O que fiz de errado?
Lindalva estava assustada. O marido exalava perfumes baratos. Suava caldo de alambique. Todo o passado da mãe veio à tona. Estava acontecendo com ela a mesma coisa. Repetia-se a história milenar. Mulher – saco de pancadas. Ela, então, começou a revidar as ofensas. Por três dias, ele a sovou com socos, pontapés e cintadas. Por uma semana, banhou-se com salmoura, sem sair de casa. A vizinha banhava-a. Esses brutos… Lindalva não soltava um gemido. Agora, pobrezinha, você sabe o que é ser mulher?, consolava a vizinha. Quis fugir de casa, mas não tinha destino algum. Pra casa da mãe? Nem pensar. Pior ainda, não tivera nenhum pedido de desculpa, nenhuma explicação. Provavelmente, ele a sovaria de novo.
Jorjão contava a façanha aos amigos e ria. Sovei com gosto. Lavei a alma. Os amigos aprovavam. Você, até que enfim, é um dos nossos. A cidade mostrou-se acolhedora. Em casa, todas as noites, Jorjão mostrava-se agressivo, despeitado. Mas que droga de comida, mulher. Nem porco come. Mereço coisa melhor. Trabalho como burro de carga. O que tenho? Ela não respondia, espreitava-o. Estava disposta a vingar-se. Pôr um fim naquela selvageria. Outras mulheres diziam: paciência, eles são uns brutos. Ela, entretanto, mastigava sal em cocho.
Apoderara de um revólver do marido e guardava-o sob o vestido. Esperava por outra sova. O dia fatal chegou: noite de chuva e trovoada, ele mal entrou na casa e já foi socando-a sem piedade. Em pouco tempo, ela estava caída e o rosto sangrando. Sacou do revólver. É a última vez que você me sova. Teu fim chegou. Pác-pác-pác! Jorjão olhou-a, espantado, depois tombou no assoalho como um tronco pesado.
Foi a júri e as mulheres lotaram o salão. Juíza Edelvira a inocentou. As mulheres aplaudiram. A partir desse dia, a cidade começou a respeitar as mulheres e os valentões foram sendo engaiolados. Há muitos homens furiosos com Lindalva. Uma mancha negra na masculinidade. Mais furiosos, ainda, com a juíza Edelvira.
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[conto / capítulo do novo romance]
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