Não apresse a primavera (Joel)

Não apresse a primavera
Joel Gehlen, crônicas de Maha Dharma, 26 de março de 2020
A primavera vai ter de esperar. Depois que se abrirem as portas e pudermos andar pelas vias, praças e passeios, ainda será o outono. E teremos a embocadura do inverno no horizonte sextante. Mais do que nunca, estará valendo o convite para voltar para casa. Perceberemos que os dias confinados talvez tenham despertado em nós a lembrança da casa das muitas moradas. Não há que se refutar a alegria dos caminhos reencontrados, os momentos nas ruas, bares e cafés. No entanto, estaremos todos mais atentos à cinza da efemeridade que a tudo consume. Não é a enfermidade o que nos acomete, como um perfume com dedos que se prolongam pelo ar, mas a anestesia do moto-contínuo. Talvez, nesse exato momento estejamos sendo tocados pela graça de nos sabermos irremediavelmente finitos.
Não quero abrir a porta e dar de cara com a primavera. De nada terá valido passar pela tempestade se não aprender a marinhar o cordame do navio. Abro mão da primavera (ah, Neruda!) pelo direito de carregar no colo uns gravetos outonais de aprendizado. Que tragédia seria, depois de ter atravessado a incerteza, a solidão e o medo, querer reencontrar quem eu era antes! Devolva-me as pernas, que não vou sair por aí, a valsar pelo chão da normalidade. Posso até dançar de muletas, mas hei de plantar meus pés nas folhas que o outono caiu. E sentir o cheiro da terra, o profundo silêncio em comunhão com seu eixo. Absorver a seiva, a vida a luz. Tenho em mim o fenecer de todas as coisas. O relógio do tempo semeia, recolhe e acolhe. Terei olhos reconciliados com o templo das árvores, as macegas ressequidas, os ciclos das águas. O contraste do meu canto vazio subitamente cortado pela presença de pássaros que recolhem a palha da ravina para os ninhos.
Para chegar à primavera é precioso ir além da rima da quimera. Uma lebre da campina corre solta, premida pelo susto de um mundo sem pegadas do bicho homem. Na sua musculatura grita a memória do tempo entocado. A felicidade não está na imensidão do gramado para percorrer, mas no contraste que surge no auge da potência e liberdade. É quando, distendida feito uma flecha, a bomba dos músculos se contrai para explodir a próxima passada.

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