Não faz muito tempo
Não faz muito tempo, os dias eram mais longos. Acordávamos e podíamos nos permitir um espreguiçar interminável. Olhávamos pela janela e era o clima lá de fora que determinava os minutos a mais sob os lençóis: se chovia, mais tempo de preguiça e vontade de ficar; se era dia de sol, saltávamos da cama, abríamos janelas e coração.
A caminhada ao banheiro podia ser lenta, era a tranquilidade que nos movia. Antes de colocar a pasta na escova, detínhamos o olhar no espelho, mexíamos no cabelo, esticávamos a pele na busca por um ou outro sinal. Víamos e sabíamos quem éramos. Na cozinha, enquanto o café passava, filtrado por um coador de pano, pensávamos nas coisas do dia.
Não faz muito tempo, esperávamos o leite ferver, o café coar, o bolo esfriar, as galinhas chegarem ao quintal para recolher com o bico as casquinhas de pão lançadas ao chão pelo chacoalhar da toalha de mesa. O trabalhador seguia seu caminho, quem ficava em casa, planejava afazeres e já separava os ingredientes do almoço. Na parte da tarde, o dia seguia lento, o sol caminhava para o horizonte quase sem se mover, parava-se para uma conversa com o vizinho, para reparar um objeto qualquer que nem falta fazia. Brincava-se.
Um dia o homem acelerou o tempo, na ânsia de aproveitar da vida o máximo. Perdeu-se, pois nunca soube incluir nesse máximo o deleite de um café da manhã demorado, de um olhar tranquilo sobre o dia, de observar um quintal, um pássaro, um filho.
É o máximo correr como um tolo em busca do dinheiro que há de redimir os dias em que não fomos felizes?
É tanto correr, tanto não ter tempo que já não é mais possível fugir dessa roda viva que nos rouba com seus relógios digitais a vida e seu sentido. Carros aceleram mais, a internet é mais rápida, os relacionamentos são fugazes. Olhamos em volta e vemos essa desarrumação na casa, essa bagunça no peito, essa desordem na mente. O leite aquecido no micro-ondas, o café instantâneo, passada de olhos nas notícias, celular, celular, celular.
Em 1992, meu primeiro personagem no teatro foi Miguel Pampa, texto de Carlos Nejar, história de um homem que vendia tempo. Se voltar a encontrá-lo, comprarei.