Negro (Andreia)

Negro

     Andreia Evaristo

Aos 16 anos me deparei com Machado de Assis pela primeira vez. A professora da escola nos mandou ler “Dom Casmurro” e pediu-nos que prestássemos atenção aos detalhes, para fazermos o julgamento de Capitu. Não nos falou da suposta traição — ou, se falou, eu não dei ouvidos: sempre fui uma pessoa que odeia spoilers. Justo por odiá-los, nunca me dei ao trabalho de ler biografias dos autores cujos livros eu devorava, para não correr o risco de me deparar com algum fato de sua vida que me desse pistas sobre sua obra.

Depois de Bentinho e Capitu, eu me apaixonei pelo bruxo do Cosme Velho. As sutilezas narradas em cada linha, todas as possibilidades abertas a cada fato narrado, as histórias que não pareciam envelhecer me deixaram caidinha pelo escritor. Depois de “Dom Casmurro”, joguei-me de cabeça em “Memórias póstumas de Brás Cubas” que, até hoje, é um dos meus livros favoritos. Um defunto autor é, mesmo, uma ideia genial.

Na faculdade, devorei todos os livros do autor que a biblioteca da universidade dispunha. Também na faculdade, deparei-me com um fato novo e curioso (ao menos, para mim): Machado de Assis fora um menino pobre e negro. “Negro?” Por mais que eu não lesse as notas biográficas, as fotos do escritor sempre estampavam a orelha dos livros. Para mim, aquele que estava na foto nunca parecera negro.

Uma colega escritora uma vez me disse que, se não mencionarmos nada, o leitor sempre pensará que nosso personagem é branco. Nunca me disseram que Machado de Assis era negro. Talvez por isso achei tão incrível a foto colorizada artificialmente que circulou na internet essa semana, onde meu autor favorito aparecia, agora sim, sem o esbranquiçamento que minha memória guardava.

Penso em cada menino negro que sonha em ser escritor, mas que têm poucos exemplos em quem se espelhar. Penso em quanto pesa saber que o maior nome da literatura brasileira de todos os tempos é negro, nascido pobre, na periferia — e que conseguiu romper o ciclo que queria aprisioná-lo. Para muitos, a foto pode ser um detalhe sem relevância. Mas eu sei que representatividade importa.

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