Notas sobre a liberdade de expressão artística

A liberdade de expressão artística abrange, para além de outras manifestações, a música, as artes plásticas, o teatro e a literatura. Trata-se, segundo José Afonso da Silva, de manifestações intuitivas, protegidas pelo Direito.[1]

Segundo o Tribunal Constitucional Alemão, não há um conceito claramente definido de arte. Nem mesmo aqueles que se ocupam do assunto, como artistas e críticos, possuem uma sua clara definição. Portanto, a própria realidade social, filtrada pela norma jurídica (o que se entende chamar de âmbito normativo[2]) não nos traz consensos suficientes. Aliás, reflete o Tribunal, seria mesmo atípica a existência de consenso num campo em que: a) a avant-garde procura sempre se libertar das manifestações que passam a ser tradicionais; b) há uma desconfiança generalizada contra formas e convenções majoritárias. Tudo isso, segundo o Tribunal, deve ser respeitado pelo Direito.[3]

Contudo, é necessário que se busque um Tatbestand (fato típico) para a liberdade de expressão artística, a fim de que o “estado de coisas” (Sachverhalt) submetido a julgamento possa desfrutar da condição de direito fundamental. Na definição de arte caberá tudo aquilo que corresponder “à livre conformação criativa, na qual impressões, experiências e vivências do artista despontam para a imediata observação (Anschauung), através de uma certa forma linguística. Toda atividade artística é uma mistura (Ineinander) de processos conscientes e inconscientes, incapazes de serem solucionados numa perspectiva racional. Na criação artística atuam juntos a intuição, a fantasia e o conhecimento artístico. Antes de compartilhamento, é ela expressão, e na verdade a expressão da personalidade individual do artista.”[4]

Não existe uma arte mais ou menos aceita. Não cabe ao Direito decidir o que está ou não abrangido pelo conceito de arte. Portanto, repugna-se qualquer concepção de uma arte correta, em oposição a uma arte “decadente” (como ocorreu na época do nazismo). Como já teve ocasião de decidir o Tribunal Constitucional alemão, o conceito de arte constitucionalmente consagrado é amplo

Um ótimo exemplo de proteção da liberdade de expressão artística traduz-se na decisão do juiz Woolsey, acerca da aplicabilidade da lei sobre obscenidade ao livro “Ulysses”, de James Joyce.[5]

Segundo o referido juiz, a lei sobre obscenidades era por demais genérica. O maior problema, contudo, traduzia-se na leitura isolada dos dispositivos considerados ofensivos, método então utilizado.[6] Seria necessário contextualizar o método utilizado. Isso significava analisar a obra completa do autor. Da cuidadosa análise, concluiu o magistrado que o autor teve por objetivo apresentar, numa versão literária, o fluxo do pensamento de um homem comum, pertencente à classe média baixa europeia. Este fluxo albergava, para além de suas preocupações imediatas, outras relativas a seu passado e seu futuro, bem como certas influências advindas de seu inconsciente. A isso pertenciam, inevitavelmente, determinados pensamentos ou mesmo ações eróticas, como a famosa ação da masturbação do personagem. Portanto, do contexto da obra, não enxergara o juiz qualquer obscenidade. Ainda que esta existisse, serviria como instrumento inevitável para uma finalidade maior, devendo ser vista dentro deste contexto.[7]

Jônatas Machado afirma não ser suficiente a mobilização de categorias específicas, como obscenidade, blasfêmia ou pornografia, a fim de excluir um conteúdo expressivo do âmbito de proteção de um direito, mesmo que reste caracterizado seu enquadramento como tal. Há casos porém em que, mesmo protegidos pela liberdade de expressão, certos conteúdos poderão ter de ceder, num juízo de proporcionalidade, a outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos.[8] Assim, por exemplo, com a intimidade ou com o direito à honra.

No Brasil, há poucas manifestações doutrinárias ou judiciais tratando especificamente da liberdade de expressão artística. Numa delas, serviu o contexto artístico para afastar como atentatória ao pudor a conduta de um diretor de teatro que reagiu a vaias mostrando sua bunda ao público. Tal “expressão simbólica” foi enquadrada na liberdade de expressão em geral e não como liberdade de expressão artística. O contexto do caso, contudo, considerou que se tratava de uma peça de teatro de vanguarda, com um público diferenciado. Tal contexto artístico, portanto, serviu para atenuar a possível gravidade da conduta do diretor perante a lei penal.[9] A peculiaridade da arte suscita inúmeras discussões jurídicas, e justamente o fato de ela não poder ser aprisionada ou enquadrada possibilitou mesmo o surgimento de novas teorias sobre a norma jurídica.[10] Portanto, também para a evolução do direito a arte mostra sua fecundidade!

 

[1] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 256.

[2] Na teoria estruturante do direito, de Friedrich Müller, porém já utilizado também por outros autores.

[3] BVerfGE 67, 213 (Anachronistischer Zug – Comboio Anacrônico), in GRIMM, Dieter & KIRCHHOF, Paul. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, p. 3-5.

[4] Cfr. BVerfGE, 67, 213 in GRIMM, Dieter & KRICHHOF, Paul. Idem, p. 5 (tradução livre). Eis o original  da definição: “Das Bundesverfassungsgericht hat als wesentlich für die Künstlerische Betätigung ‘die freie schöpferische Gestaltung’ betont, ‘in der Eindrücke, Erfahrungen, Erlebnisse des Künstlers durch das Medium einer bestimmten formensprache zu unmittelbarer Anschauung gebracht werden.’ Alle künstlerische Tätigkeit sei ein Ineinander von bewussten und unbewussten Vorgängen, die rational nicht aufzulösen seien. Beim künstlerischen Schaffen wirkten Intuition, Phantasie und Kunstverstand zusammen; es sei primär nicht Mitteilung, sondern Ausdruck, und zwar unmittelbarster Ausdruck der individuellen Persönlichkeit des Künstlers”.

[5] O caso é descrito no livro de SCHWARZ, Bernhard (A Book of Legal Lists: The best and worst in American Law. Nova Iorque: Oxford University Press, 1997, p. 164-166) em que o autor (segundo ele próprio), ao seguir a moda americana de tudo classificar, elaborou algumas listas sobre questões jurídicas: os melhores e piores juízes, as melhores e piores decisões, etc. No caso, trata-se das melhores decisões, não pertencentes à Suprema Corte.

[6] Consistia ele em sublinhar e destacar as expressões ofensivas. Note-se que, como temos insistentemente ressaltado, a mudança, operada no direito americano (para a qual muito contribuiu esta decisão, confirmada pela Suprema Corte também em outros julgados) e em outros países (por diversos caminhos), influencia toda a dogmática da liberdade de expressão, desde a compreensão do conteúdo do dispositivo, até a caracterização da expressão como referente a fatos ou valores.

[7] SCHWARZ, Bernhard, op. cit., p. 165-166. Essa decisão foi ainda encarada como uma excelente critica literária.

[8] “… não basta mobilizar categorias genéricas como obscenidade, blasfêmia ou pornografia para retirar um determinado conteúdo expressivo do âmbito de proteção do direito à liberdade de expressão, nem alegar, em termos arbitrários e impressionistas, que os mesmos não têm qualquer ‘redeeming social value’. Igualmente importante é o facto de que um conteúdo expressivo não deixa de ser protegido pelo facto de ser considerado obsceno ou ofensivo, mas tão somente por se demonstrar, e na medida em que ficar demonstrado, que o mesmo atenta de forma desproporcional contra direitos e interesses constitucionalmente protegidos.” In: Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 424.

[9] HC 83.996, RTJ, 194/927.

[10] Assim, por exemplo, com a teoria estruturante do direito, de Friedrich Müller, que surgiu justamente a partir de suas reflexões sobre a liberdade de expressão artística.

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