O diabo chupando mangas verdes e rindo (David)

O DIABO CHUPANDO MANGAS VERDES E RINDO
DAVID GONÇALVES
Quando Deus dá um dom, devemos exercê-lo. A gente, entretanto, se descuida. Deus dá, o Diabo tira. De uma ninhada de dez, pobrezinhos, o caçula Joãozinho viveu por destino: sujeira, fome e vermes no meio do garimpo selvagem, por vezes comendo terra do barranco. De uma vila a outra, foi abandonado pelo caminho. Joãozinho cresceu roendo unhas.
Foi pelos quinze anos que descobriu o dom. Do nada, previa fatos, trovoadas, secas, colheitas difíceis. Mas, sobretudo, por onde passava as mãos, a cura de pequenas doenças: dores de estômago, de cabeça, de caxumba caída, arca caída, tonturas… Alguém o aconselhou a buscar a fé, os textos bíblicos, a fala de pastores consagrados. Por um amigo de seus pais ausentes, foi levado a frequentar centros espíritas. Então, tudo se revelou: recebia os espíritos e, através deles, promovia curas e aconselhamentos. Coisas de Deus, diziam.
Até aí o Diabo não deu bola. Mas, quando a notícia correu pelo vale, e as pessoas começaram a procurá-lo, o Cujo ficou inquieto, com a pulga atrás das orelhas. O que Deus estava tramando? Por que aquele magricelo, pau de virar tripas, promovia curas debaixo de seu nariz? Começou, então, a frequentar as sessões espíritas e a observá-lo.
Sim, o Joãozinho, figura obscura, praticava o bem. Operava milagres. Sem ferir o corpo. Sem bisturis. Em troca, nada recebia, a fama aumentando. O Diabo secou o próprio cuspe.
– João de Deus – aplaudia o povo. – Mãos santas! Deus presente…
Relatos de curas circulavam. Na porta do centro espírita, uma casa velha de madeira, não cabia mais ninguém. Doentes desesperados se espremiam, oravam, pediam aflitos a presença de João de Deus. Doavam coisas: abóboras, cachos de banana, rosários, correntinhas de ouro. A princípio, ele rejeitava.
O Diabo resolveu agir. Fomentou-lhe a cobiça por dinheiro e as diabruras do sexo. “Em pouco tempo, terei sua alma ao meu dispor. Dinheiro e sexo não infalíveis.”
João de Deus começou a dormir mal. Sonhos absurdos, terríveis. Mulheres nuas. Orgias com deusas abusadas e irresistíveis. Disse, também, aos seus seguidores que não podia viver de vento, que o dinheiro faz parte da vida terrena. Mas isso não foi aceito pelo centro espírita. Cheio de cobiça, revoltado, resolveu criar o centro próprio, onde mandasse e desmandasse. O Diabo aprovou-lhe prontamente e deu-lhe razões e condições.
– Fique podre de rico – sussurrou-lhe. – O que é ganho não é roubado.
Assim ele procedeu: pedia aos seguidores convictos e desesperados as doações em dinheiro. Nada de banana, abóboras, melancias, rosários. Muito menos cheques. Aos poucos, a fortuna se fez. Quadrínculo, naquele tempo, era uma vilazinha. De repente, inchou de gente: armazéns, pousadas, restaurantes, lojas… Todos abençoavam os dons de João de Deus. O Diabo ria, satisfeito. João do Capeta – espere para ver.
– Você tem o direito de ter todas as mulheres, pecadoras e santas.
Assim se deu: escolhia a dedo as de seu agrado, levava-as para uma sala separada e, lá, subjugava-as com seu poder e satisfazia os desejos bestiais. Todas, curadas ou não, calavam-se e, quem se aventurasse a delatá-lo, ele ameaçava apagá-la.
O Diabo ria mais, e mais, e mais, até doer o couro da barriga. Dinheiro e sexo – sacos sem fundos: nunca enchem. Quanto mais se tem, mais se quer.
Entre tantas mulheres, uma o denunciou. Ele comprou a denúncia. Outra denunciou também. Ele deu sumiço. Tanto bem ele fazia aos homens e tinha que aguentar falsas denúncias. Estava rico, sete fazendões, milhões nos bancos. Malas cheias de dinheiro escondidas. Tudo isso, pensava, era a recompensa de seu trabalho árduo, paciencioso. Vinha gente de todos os estados e de outros países. Para quem está na beira do abismo, qualquer palha ao vento é a salvação.
Naquele dia, na fila dos desesperados, ele viu aquela mulher. Tão linda, majestosa, tão cheia de curvas ilícitas, que ele, afobadamente, afastou todo mundo da fila e a chamou para a sala de milagres. Fez com ela o que quis e a despachou, saciado.
Dias depois, a denúncia estourou na mídia. Mas que víbora, pensou. Tinha que comprá-la. Mas não conseguiu. De repente, o mundo sabia de seus pequenos prazeres. Uma a uma, as mulheres abusadas durante mais de 30 anos, então caladas, foram denunciando. Mais de seiscentas mulheres. O reino construído desmoronava como castelo de areia. Todas as suas curas não valiam nada?
A polícia veio buscá-lo. Estava arruinado. O que Deus dá, Ele não tira. Mas o que o Diabo dá, ele suga tudo. Quadrínculo começou a ruir junto, embora uma multidão de seguidores clamava por sua inocência.
Na praça, invisível, está o Diabo rindo e chupando mangas verdes, sem baba.
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