O universo inquieto de Caio Fernando Abreu
Foi tardiamente que conheci Caio Fernando Abreu. Há cerca de oito anos, surpreendi-me com o vigor de seus contos. E há poucos meses, conclui Onde Andará Dulce Veiga, um de seus romances.
Nesse pretenso ensaio, de pura veleidade, vou tratar apenas desse romance e de uns poucos contos do livro “O Ovo Apunhalado”. Aqui já há, porém, muito do universo irrequieto de Caio F. Abreu.
Dulce Veiga é um romance em que um jornalista e escritor sai em busca do paradeiro de uma diva dos anos 60, que sumira sem deixar rastros.
A busca incessante por Dulce Veiga parece refletir um desejo de redenção, de superação pela arte. Ou pela mera expressão artística que pode existir em cada um de nós. Afinal, o romance começa e termina com referências ao cantar. Veja-se as primeiras frases: “Eu deveria cantar. Rolar de rir ou chorar, eu deveria, mas tinha desaprendido essas coisas.” A última também faz referência ao cantar. Cantar é um exercício de libertação. O personagem se reencontra com a esperança quando consegue cantar.[1]
A despeito de evocações recorrentes à cultura pop, esse é só o pano de fundo para a busca mais profunda de Caio e de seu personagem. Dulce Veiga, então, parece mesmo ser um pretexto. De pureza decaída? E, depois, de pureza regenerada? De uma boemia redentora, pela arte? Pois as Vaginas Dentatas, o grupo musical liderado pela filha de Dulce, Márcia, não exprime essa possibilidade. A geração seguinte já não traz consigo a possibilidade de uma epifania.
Dulce Veiga, a personagem, remete também à nostalgia do que poderia ter sido, não tivesse o Brasil vivido tempos políticos tão pesados. Sentindo o peso da realidade, Dulce foge porque Rafic, todo-poderoso na ditadura, ameaçara jogar o nome dela no lixo, destruir sua reputação. Um assassinato de reputação, um Rufmord, como diriam os alemães.
Pra piorar, a trama toda se passa num verão sufocante, que torna o ambiente do romance quase claustrofóbico.
O pretenso herói do livro, nosso personagem principal, é anônimo. E, a despeito de um livro de poesia publicado, ainda não se encontrou no mundo. “Na verdade, o romance inteiro é o pobre buscando a própria anima”, refere o próprio Caio[2]. Ele reflete esse desespero, essa busca, nas seguintes palavras: “E além deles, aquela criatura de grisalho peito cabeludo em que pouco a pouco eu ia me transformando, enquanto a vida rolava e nada, nada acontecia”. E referindo-se a uma possível e inverossímil salvação pelo dinheiro: “Nem sequer correntes de ouro para exibir entre o matagal grisalho”.
Essa busca, nas palavras do próprio Caio, reflete-se nos outros personagens. Diz Caio, referindo-se a seu processo de criação literária, que seu personagem, um pouco anódino, continua em sua busca pessoal, e que os demais são inclusive seus alter egos.
No estilo, Caio é contemporâneo. Usa e abusa das referências à cultura pop. E isso o torna ao mesmo tempo acessível e fascinante, sem perder, claro, referências culturais profundas. Como nessas passagens:
“Naquele tempo, remoí, antes que a vida se transformasse numa sucessão de manhãs iguais às de Gregor Samsa, naquele tempo pelo menos sabia escrever.”
“Aquele som real furando a manhã. Grosseiro demais para um cravo, vulgar demais para Haendel.”
As caracterizações contemporâneas fazem parte de um estilo transgressor, cuja linguagem também é pop. Tem-se ali a São Paulo dos anos 60 e do final dos 80, com descrições da cidade e de sua decadência. Revela contemporaneidades, desde a música até as cores, lugares e hábitos da renovada Paulicéia desvairada. Que remete também a outros lugares do Brasil, inclusive ao nosso peculiar Sul.
Há referências literárias. Há nomes de rua, de discos, de cantores (Marina, Rita Lee, Cazuza, Jim Morrison, Suzanne Vega, Sinead O’Connor, Janis Joplin, Tina Turner), de chás modernos, de programas de televisão. Ao I Ching, ao horóscopo. Há consumo de drogas, maconha, cocaína, heroína, por personagens quase todos decadentes.
O tom da narração é frenético. Mas é também alternado com passagens românticas, propositalmente em itálico! Por outro ângulo, essa parece ser também a impressão da crítica da editora francesa que adquiriu os direitos para publicação: “Le style est a fois poétique et efficace, et sert tantôt la violence du monde de rock, tantôt la nostalgie des annés 60 et de la bossa-nova”.
Há passagens do desencantamento da nova geração, como nesta poesia:
“O passado é uma cilada,
não há presente nem nada,
o futuro está demente:
estamos todos contaminados.”
E também a inevitável redenção e heroísmo da escrita, familiar a quase todo escritor:
“Escrever tem desses mistérios. De repente, sem esperar, um dia você consegue despertar alguma coisa que está viva dentro de muita gente”, dito na voz do editor Castilhos.
O livro expressa também o desencantamento com a situação nacional e com o relegar da cultura a um plano acessório. Para a burguesia paulistana, encarnada em Rafic, dono do jornal em que nosso herói trabalha, anticomunista ferrenho e apoiador do regime militar, a cultura tem papel acessório, a despeito de sua mulher publicar um livro de poesias. A cultura está à margem da vida real, feita de dinheiro, de opressão e de mandonismo: “gosto de conviver com os jovens. Quem sabe uma noitada daquelas bem artísticas, faz tempo que a gente não”, diz Rafic. O clima da casa era regado a músicas de Ray Conniff (já decantada de todo vigor da música clássica) e Simone, tão próprias a ambientes burgueses da época.
Em detrimento da fantasia, tão presente em seus contos, nesse livro há um forte tom autobiográfico. O personagem principal é bissexual, confundindo-se com o próprio Caio. E a AIDS aparece com todo o horror que a caracterizou nos anos 80 e 90 e que, por fim, vitimou o escritor. Com Lídia, sua parceira no livro, o amor era sem graça (para alguns, nem fica caracterizada a relação conjugal entre os personagens). Caio fala dessa condição num tempo em que a homossexualidade ainda era tabu no Brasil. Ele mesmo parece, porém, divertir-se com alguns arroubos. Como na parte da Pietá gay, peça apresentada no romance como uma subversão do Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues.
Em meio a suas divagações, a sua escrita genial, a cogitações existenciais e confissões íntimas, Caio tenta emplacar um thriller. Dá-lhe o formato de um filme b, daí o subtítulo: um romance B, com clichês e estereótipos propositais, típico de filmes policiais e noir.[3] Com efeito, vários personagens são confusos, cômico-dramáticos, às vezes estereotipados, como Terezinha O’Connor, Castilhos, o redator do jornal; o machão Rafic, saudoso da ditadura militar; e a roqueira Márcia, em sua rebeldia já tão previsível.
Como não se deixar seduzir pela saudade de Dulce Veiga, linda, loira de olhos verdes e de maçãs salientes, envolta numa névoa de mistério, de melancolia, de fumaça de cigarro, uma criatura avessa ao dia? Sua poltrona de veludo verde encarna todo aquele ambiente noir: serve como símbolo de boemia e de encantamento.
Não faltam descrições de sonhos no romance. Caio aproxima-se aqui de autores contemporâneos que consideram fundamental, para a construção de seus personagens, a presença de uma tessitura freudiana. Mesmo Sartre, que se recusou obstinadamente a aderir à psicanálise, enfatizava a importância de personagens cujas manifestações inconscientes estivessem presentes.
Mas a leitura atenta de Dulce Veiga justifica a afirmação amplamente difundida de que Caio é mais contista do que romancista. Sustentar um romance não deve ser fácil. E, lá pelas tantas, os personagens principais parecem se cansar de si próprios.
Nosso protagonista vai e volta em suas descobertas de sua homossexualidade. Prende-se à ação com outros personagens de um modo um pouco circular, tateante. Em certos momentos, a trama parece ter dificuldades de continuar. Em favor do autor, porém, vale situar também o leitor: não li o livro de uma sentada, porque estava entretido com outras questões e temas importantes. Isso talvez tenha enfraquecido minha percepção da totalidade da obra.
CONTOS
Já em “O Ovo Apunhalado”, as estórias são espessas, precisas, comparando-se aos melhores contos fantásticos que conheço.
Caio aproxima-se da melhor ficção fantástica no conto Eles, quando descreve os hábitos e características de seres que parecem vir de outro mundo. Trata-se do uso do fantástico como subterfúgio para fazer fluir suas paixões, para exorcizar seus fantasmas, para expressar seu inconformismo diante do status quo. Em certas descrições de personagens, Caio, parece-me, aproxima-se do ficcionista Stanislaw Lem, autor polonês da época da guerra fria.
Os personagens são psicodélicos e alienígenas, dando fim à modorra de um povoado. Seu começo é genial: “O que eles deixaram foram esses três postulados: importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias”. É uma revolta contra a normalidade, mas não só contra um tipo de sociedade; parece mesmo uma revolta contra a condição humana, as limitações da vida, da existência, e uma tentativa de dela extrair aquilo que realmente importaria: a luz, o amor, a revolta contra a normalidade! É um grito furioso contra a realidade e suas limitações. Apenas aqueles que enxergam serão salvos!
Esse conto traz consigo a marca da revolta, mas também uma escrita despojada, que busca superar limitações próprias à linguagem. E as polaridades expressas no conto, o nós e eles, fundem-se na ambiguidade humana.
Em “Réquiem por um Fugitivo”, o conto revela novamente uma dimensão onírica, da ordem do fantástico. Há um anjo entre o protagonista e sua mãe, cuja morte é iminente.
APROXIMAÇÕES À CULTURA POP E A LITERATURA COMO REFERÊNCIA
Que bafejo de criatividade, de contemporânea erudição, temos na literatura de Caio F. Abreu, nós, da geração anos 80, cuja maioria cresceu à sombra de telenovelas, de seriados, de uma cultura pop devassada. Nossas referências culturais maiores, para aqueles que não tiveram a sorte de uma boa orientação pessoal, eram as de uma literatura mal imposta pela escola.
Mas é justamente aí que se revela uma das qualidades da obra de Caio e sua capacidade de empolgar públicos diversos, para além dos círculos literários convencionais. Num tempo em que boa parte da literatura tornou-se hermética, quase esotérica, essas referências provocam e convidam o leitor com menor formação cultural a também se interessar por literatura de verdade.
E sejamos justos: já há um bom tempo houve o retorno de uma literatura voltada a um público mais amplo, menos hermética (aquela do tipo James Joyce em Ulysses). Mas talvez seja tarde demais, é preciso desesperadamente formar público. Ante a hegemonia da comunicação visual, com múltiplas ofertas culturais, de filmes, seriados, novelas, Netflix, downloads e streamings, qualquer literatura um pouco mais profunda corre o risco de se tornar hermética. Menos por si, e mais pelo público que não está ou não se sente qualificado a acompanhar essa oferta literária fascinante.
Na literatura de Caio, nesse espaço pop-culto, num romance B, há, sim, espaço para uma profunda psicologia, e para um notável conhecimento da alma e de situações-limite. Como na parte da separação entre Dulce e Alberto Veiga: “Depois de uma fase de queixas e acusações – ‘esse espaço de rancor inevitável’, ele dizia, ‘quando o amor acabou e ainda não teve tempo de transformar-se em alguma outra coisa, boa também’”. Ou então ao referir que se buscava “uma outra espécie de casamento. Menos passional, mais artístico”.
Caio, para nós da geração anos 80, suplanta, nas possibilidades de identificação com as referências culturais trazidas em sua obra, outros monstros da literatura recente brasileira, como Antonio Callado. Callado, em seu Reflexos do Baile, ou no Sempreviva, remete a cenários datados e específicos. O primeiro, à luta armada e às dificuldades de uma geração durante a ditadura. O outro, às vicissitudes de uma cidade de fronteira, no longínquo pantanal brasileiro.
Em um parágrafo, Caio faz uma descrição de personagens da vida cotidiana brasileira que supera alguns tratados sociológicos. Nosso herói, o narrador anônimo, cogita se procura ou não seus velhos amigos. Ei-los: Nelson, que, segundo si próprio, não faz nada além de alimentar a mulher e as três filhas; Maria do Carmo, membro típico do “Lamuriento Exército das Vítimas do Feminismo”, com um filho, sem marido ou amante, “carnes e sonhos despencando pelas academias de aeróbica e redações de revistas femininas”; Fernando, cheirador de cocaína, capaz de brochar com a primeira prostituta ou travesti que pegasse. Mas além desses havia a “Lépida Legião Daqueles que Tinham Dado Certo”: todos casados, vamos fazer uma jantinha, venha ver os vídeos de Tóquio, os computadores de Nova York, os vinhos de Paris. Todos numa “amargura explícita ou atenuada por fondues, sessões de slides e armagnacs importados”. Ficar só “era mais limpo”. Ou então quando ele arma sua “mais profunda voz de Homem Maduro & Compreensivo, Embora Fatigado das Loucuras da Juventude”.
JOINVILLE E A LITERATURA
Nossa cidade é ainda cruel com a literatura e com a erudição. Aqui há um esforço do coletivo, com raras exceções, para fazer apenas vicejar as ciências aplicadas, aquelas que fazem rodar a engrenagem da indústria.
Sim, nessa cidade, como de resto no mundo contemporâneo, as cosmovisões não se dão mais pelas ciências, pela filosofia e pela literatura. Em Joinville, as referências e os modelos de vida (que as novas gerações que estão vindo nos resgatem) precisam ter um cunho utilitário. Se não servir para fomentar a economia, para gerar mais capital, para se ganhar dinheiro, enfim, a criação artística deve ser rechaçada. Não à toa que já se extinguiu a Fundação Cultural e o Carnaval quase virou caso de polícia. Assim, uma lógica de cálculo, tão presente entre nós, e tão necessária para uma economia saudável, adentra, indevidamente, em outra seara existencial e contamina o evolver de outras manifestações essenciais, inclusive a artística.
Decerto que isso só se acentua nos dias atuais. Em nossa geração, dos anos 80, o modelo social hegemônico a ser seguido nos era passado pelos capitães de indústria locais, e pelo espetacular desenvolvimento econômico autônomo de nossa cidade. Agora, nesse começo do século XXI, intensifica-se o modo de vida norte-americano e sua individualidade difusa, de resto perpassadora também da lógica do cálculo para além da seara econômica.
QUE VENHAM OUTROS
Há algum tempo desconfio da ideia de gênio, de alguém extraordinário que estava quase predestinado a fazer o que fez. Mas o brilho da obra de Caio ofusca e ao mesmo tempo nos alimenta, a nós, meros mortais! E talento, dizia Caio, é mesmo coisa rara! Que venham outros, com talento ou, melhor ainda, com esforço, resgatar as futuras gerações do tédio e da modorra do cotidiano!
[1] Apenas quando encerrava esse ensaio é que consultei outros ensaios ou críticas sobre Dulce Veiga. Devo essa referência ao cantar a Idilva Maria Pires Germano e Daniel Mattos de Araújo Lima: Nomadismo e solidão na cidade veloz: alegorias da compressão espaço-tempo na ficção de Caio Fernando Abreu. E referem correspondência de Caio em que este afirma: “Dulce Veiga é um livro todo construído no sentido do encontro com o ato de CANTAR. Que se possa cantar, e o universo passa a ter sentido”.
[2] Correspondência de Caio com Maria Lídia Magliani, 19.3.90.
[3] Outra possibilidade (pouco crível, a meu ver) do porque do subtítulo é referida por Bárbara Loureiro Andreta, na resenha ao livro de Anselmo Peres Alós: “A letra, o corpo e o desejo: masculinidades subversivas no romance latino-americano”. Florianópolis: Mulheres, 2013. Segundo Andreta, “uma leitura do subtítulo, tendo por referência o mercado fonográfico, sustenta a possibilidade de que, desde o seu subtítulo, o romance de Caio Fernando Abreu já anunciava a experimentação narrativa diferenciada do que poderia ser considerado o lado A do escritor, a saber: suas coletâneas de contos, especialmente o sucesso de crítica e vendas “Morangos mofados”, publicado em 1982. Este romance é conduzido por uma voz narrativa autodiegética, sinalizando a reivindicação, por parte de quem narra, de uma participação quase que autobiográfica na construção da narrativa…”.