Os amigos no seu quintal(Jura)

Os amigos que habitarão seu quintal

Jura Arruda

Você nunca quis morar na zona Sul da cidade, sequer atravessar o trilho que sai da estação e divide as avenidas Getúlio Vargas e Santa Catarina, mesmo quando necessário. E olha que já morou em nove bairros, em todas as regiões desta urbe. Tenho certeza que ainda lembra que achava os ônibus marrons da Gidion sombrios se comparados aos azuis da Transtusa. Você sempre teve mesmo essa mania de se apegar a lugares e odores. Sua memória guarda tudo com tanto apreço que o presente costuma cobrar sua presença, de tão lá atrás que você costuma ir, e ficar.

Esta carta deve chegar a você em meados de novembro. Você está em 2016. Chegará em sonho ou num pensamento solto que você nem saberá como surgiu. Apesar de negacionistas colocarem em risco nossa vida em 2021, a ciência avançou muito, mas não, ainda não criamos uma máquina do tempo. Aposto minhas fichas na ficção literária e, quem sabe, numa condição esotérica ou numa viagem astral que a fará chegar até você.

A contragosto, você está deixando um belíssimo apartamento, em um condomínio de alto padrão no Saguaçu, construído exatamente no terreno em que costumava, lá nos idos de 80, buscar serragem para cobrir o estábulo dos cavalos que o pai adquiriu tão logo chegou à cidade.

O pai partiu em novembro de 2020. Ainda dói, mas você ficará bem. Exceto nos dias de jogo do nosso time, quando você cometerá o lapso de abrir o WhatsApp para falar sobre a escalação ou uma nova contratação.

O sucesso de seus escritos não lhe trará conforto financeiro, pelo menos até agora, e você terá que abrir mão dessa moradia que a Claudinha tanto gosta, muito bem localizada, próxima a áreas onde caminhar é caminhar feliz. Foi a Claudinha que encontrou o geminado no bairro Floresta, que você vai olhar hoje à tarde, consciente de seus limites de escolha. Vocês vão decidir comprá-la em menos de cinco minutos e a chamarão de Casa da Floresta. Ela tem um pequeno quintal no fundo, com três por cinco metros. Um deles é ocupado por um piso que limita a lavanderia. O que sobra nós chamamos de nossa chácara de 12 metros quadrados.

Se não é a região que você mais gosta da cidade, certamente é o pedaço de chão em que você mais encontrou a paz que habita o espaço entre a semente e o broto. Esta sua mini chácara você vai transformar em laboratório para o plantio das mais variadas sementes. Terá certa dificuldade com flores, mas sua horta será tão fecunda que em alguns momentos você olhará para si imaginando-se o verdadeiro menino do dedo verde. Tudo vai começar com um pé de tomate cereja, do qual vocês pegarão, na primeira colheita, quatro frutos, farão fotos e comerão temperados com sal apenas. E será indescritível.

Com o tempo, você fará muitas mudanças estéticas, e sempre terá algo para colher, seja o manjericão e o hortelã, que nunca faltarão, a salsinha, a cebolinha e o alecrim, lavanda, sálvia, tomilho, orégano; e cenoura, couve, agrião e alface. Às frutas você dará atenção especial e, acredite, nesse 3×4 de seu quintal, você terá uma tangerineira, um limoeiro, uma goiabeira, um cafeeiro, uma jabuticabeira e os ramos floridos de um pé teimosíssimo de maracujá doce. Tanta árvore para tão pouco espaço. Poucos acreditarão. Podas serão necessárias.

Parece bom, Jura de 2016? Pois o melhor está por vir. Num sábado outonal, daqueles com brisa leve e fria que nos faz voltar às manhãs de maio de 1984, quando pisamos as terras do Sul pela primeira vez, é que perceberá como seus amigos estão presentes, mesmo durante uma quarentena de mais de ano.

É pelo vento que chegarão as memórias doces de Ana Paula da Silva. Ele fará soar o sino dos ventos, som que lhe acalma e encanta, seguido frequentemente pelos sons dos pássaros que o visitarão. Você olhará para o vaso abaixo do sino e verá a dracena que Gabriel Furtado lhe terá dado em sua primeira visita à casa.

Em cada canto um amigo floresce. Deixe-me contar: logo depois da jabuticabeira, um vaso de barro abriga o que Marlete Cardoso chamou de “comida de passarinhos”, lá nascem flores brancas e pequenos frutos simetricamente arredondados, e vermelhos. São também responsáveis pelas visitas que recebemos diariamente.

Da mãe, uma jiboia toma a parede que faz divisa com o vizinho de trás. Não sabia que ela se agarrava ao cimento tal qual a unha de gato que cobre o muro de nossa vizinha à direita.

Embaixo do pergolado que sustenta o maracujá, uma reunião de amigos se faz: a tapete de rainha, também conhecida como violeta vermelha, que Maria Cristina Dias nos presenteou desce de uma das vigas e já quase alcança o chão, suas flores dão o toque mais colorido do quintal e, quando acompanhadas das flores de maracujá, faz o canto mais pictórico da paisagem; a árvore da felicidade quem nos trouxe foram Silvane Silva e Fabinho. Em poucos meses triplicou de tamanho e casou perfeitamente com o maior vaso do quintal; ao lado, num vaso um pouco menor, o ora pro nobis que Donald Malschitzky trouxe já vai robusto, em breve tentará dominar o quintal, eu sei; é de Donald também as mudas de salsinha, a cebolinha e manjericão que ficarão em um único e generoso recipiente, onde o alecrim será acrescido para compor nosso vaso de ervas e temperos.

Lembra que falei do primeiro fruto do quintal, que provamos num quase evento? Pois Donald também trouxe algumas mudas do inesquecível tomate cereja. Viu, Jura de 2016? É um quintal cheio de vida onde os amigos fecham ciclos, arredondam arestas, fazem florescer, crescer e seguir. São eles que habitarão seu quintal e, a cada manhã, trarão histórias e um doce não esquecer. É no conjunto desse verde que a felicidade brota, seja em que região da cidade for, no tamanho do quintal que você tiver, no espaço infindável de um coração agradecido.

Tudo vai ficar bem.

Outono de 2021.

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