Os Três Porquinhos da Harmonia Lyra

 

OS TRÊS PORQUINHOS DA HARMONIA LYRA

 

Eu recém havia descoberto a bicicleta, essa maravilha quase voadora que fez encurtar meu mundo de 12 anos. Aprendi nas grandes, de adulto, passando a perna por baixo da barra, em engraçado malabarismo, naquela “zica” velha e enferrujada. A bicicleta monareta, sonho de consumo da criançada, apareceu bem depois. Como toda a gurizada da rua, após alguns tombos, aprendi a andar “normal”. Bastava erguer bem um dos pedais, colocar o pé nele com impulso e quando a bicicleta começava a correr passava a outra perna por cima do selim.

Ela se tornou meu corcel, parceira das aventuras que começaram próximo de casa, mas que aos poucos galgaram distâncias maiores. Logo comecei a ir até a “cidade”. Quase toda semana mamãe pedia para ir comprar sardinha no mercado público, numa aventura em que havia todo um percurso repleto de encantamento a ser percorrido.

Começava no início do Boa Vista, perto da atual Ponte do Trabalhador, onde morávamos. A rua Aubé era ainda estrada de chão, tinha que pedalar forte para subir o morrinho da venda do Seu João Maia, depois era se deliciar na descida em curva, quando a bicicleta ganhava impulso e o vento batia forte no rosto. Nada se compara à sensação de liberdade desses momentos. Após a descida do morrinho ia beirando o manguezal e passando pelo lixeirão logo a frente. Depois tinha a figueira antiga, onde deixávamos nossas roupas quando tomávamos banho no rio Cachoeira, bem na frente da subida da casa do Seu Fritz Alt. Na curva passava pela empresa Buschle e Lepper que até hoje é difícil pronunciar, depois na fábrica de barcos do Seu Bruno, do lado direito tinha uns casarões que evocavam mistério, em seguida a fábrica da Schneider e a rua do mercado.

Mas eu seguia direto para a “cidade” pela rua Aubé, atravessava a ponte do centro onde tinha o Clube Náutico Cachoeira à direita e o Clube Cruzeiro à esquerda. Passando por cima do gramado cruzava a praça da bandeira e subia a rua Nove de Março, até chegar na Biblioteca Municipal.

Largava a bicicleta na entrada e tirava da bolsa de pano levada a tiracolo os dois livros de capa escura, geralmente encadernados em razão do uso contínuo, e os devolvia. Com o rosto afogueado escolhia outros, as vezes com sugestão da senhora de olhos azuis que sempre sorria e os colocava na minha sacola.

Na pressa de criança saía pedalando em disparada até adentrar na rua Dr. João Colin, passando pela Malharia Arp e pelo posto de gasolina Hoepcke. Gostava de ir até a rodoviária, na esquina com a rua Max Colin, pois adorava ver os ônibus da Cometa.

Voltava e a curiosidade de criança me fazia parar e admirar a quantidade de coisas que havia na loja do seu Fernando Tilp: — Seu Tilp, tem ratoeira? —Tem; — Seu Tilp tem melado? — Tem; — Seu Tilp, tem banha de capivara? — Tem… Havia de tudo ali, ele mostrava coisas novas que vieram do Rio de Janeiro e até coisas da Alemanha: — Veja que fino esse tergal, olha como é macia essa alpargata…

Quando dobrava a esquina a imagem da Harmonia Lyra se mostrava deslumbrante, com suas duas torres e suas janelas quadradas refletindo o sol. Sempre parava embaixo da marquise, onde se anunciava os espetáculos, com cartazes e fotos de orquestras, anúncios de bailes, uma solista austríaca de voz única, cada vez havia algo diferente.

E aquela manhã era especial, havia um cartaz com o desenho dos três porquinhos, mostrando a encenação da peça. Não era um desenho qualquer, eram eles mesmos, os três porquinhos, que na minha imaginação pareciam reais. Em primeiro plano aparecia o Prático com uma colher de pedreiro na mão, construindo sua casa de tijolos, mais atrás vinha Heitor e Cícero correndo, com o Lobo Mau em seu encalço. Ao fundo a floresta, com suas árvores retorcidas. Eu já havia lido a história, mas agora eles estariam ali, ao vivo e à cores. Eu estava maravilhado, sequer sabia como funcionava uma peça de teatro.

Estava compenetrado esquadrinhando o cartaz quando uma senhora elegante saiu do prédio e passou por mim sorrindo. Sorri meio sem jeito e senti o perfume que ficou no ar.

— Você vem assistir a peça das crianças? Perguntou-me com interesse.

— Não sei, titubeei em responder, a pergunta me pegou de surpresa.

Ela deu um sorriso largo, deve ter ficado curiosa com meu interesse por teatro.

— Vocês são em quantos irmãos?

— Sete, respondi prontamente.

— São muitos, falou com o sorriso mais largo ainda. Entrou novamente na Lyra e voltou rapidamente com dois ingressos.

— Tome, falou sem diminuir o sorriso, pode trazer mais alguém. Você vai adorar essa peça.

Peguei os ingressos, eram lindos, tinham o mesmo desenho do cartaz, mal agradeci a senhora e saí em disparada.

Estava entusiasmado, eu ia poder assistir a peça dos três porquinhos. O cheiro de cachimbo mostrou que estava passando na frente da Sorveteria Polar, onde alguns homens tomavam café e liam seus jornais sob os coqueiros.

Atravessei a Praça da Bandeira, adentrei à rua Itajaí, que na época se escrevia Ithajay, e fui em direção ao mercado. Mal comprei as sardinhas e saí em disparada para casa:

— Mamãe, Mamãe, gritava com o rosto queimando do esforço, —

Olha só, ganhei ingressos. Mamãe sorriu, apanhou os ingressos, examinou bem e falou:

— Como você conseguiu?

Atropelando as palavras contei da senhora de sorriso largo. Depois de ouvir as explicações ela falou:

— Domingo nós vamos então.

Aquele resto de semana demorou para passar, os dias ficaram intermináveis, mas o domingo chegou, tomamos o ônibus e fomos assistir a peça. Quando entramos na Harmonia Lyra fiquei de olhos arregalados, pois não imaginava que por dentro fosse tão bonita. Aquelas escadas majestosas, aquele clima austero, aquelas cortinas grandes, fiquei maravilhado. Segurando a mão de minha mãe assisti a peça sem piscar os olhos. E fiquei com aquele sentimento de querer voltar, de ser parte daquele todo.

E esse sentimento sempre me acompanhou nas vezes que voltei, ao assistir peças, concertos e diversos eventos. E hoje sou grato e sinto-me honrado por ser parte da Harmonia Lyra, pois aqui fui recebido como um dos acadêmicos da Academia Joinvilense de Letras.

 

Salustiano Souza

Maio/2022

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