Pão, poema e poesia (Elizabeth Fontes)
Pão, poema e poesia
Elizabeth Fontes
Pão é o poema
em estado de preparo e espera:
a memória do trigo que dourou,
do sal que temperou,
do azeite que ungiu.
A farinha em traje fino,
água acrescida ao fermento,
açúcar em tom delicado.
O poema do pão habita
em tudo que os sentidos tocam:
os perfumes do grão,
os sabores do alecrim,
os olhos pousados nos tomatinhos
e nas folhas de manjericão.
A poesia é outro sentimento.
É o estado contemplativo do pão.
É sobre o sentido de olhar
o verso que emerge
diante o pão envolto em toalha de linho.
É o fio que recorda
a memória do pão guardado nas lembranças.
A poesia está nas entrelinhas.
Nas migalhas espalhadas.
No sabor das memórias ancestrais.
Nos cheiros que povoaram
infâncias e quintais.
Nas manhãs e nos gostos do café,
nos colos das avós,
nos aventais quarando nos varais.
A poesia está no significado
que só cabe nos pães
e nas memórias encarnadas,
no sentido dos encontros,
na partilha das celebrações.
A poesia está nas cestas e nas costas,
nos panos de alvura perfumada,
nas dobras do fermento,
na costura do tempo.
Nos nomes e no silêncio da cozinha.
No fogo crepitando lembranças.
Doce é a poesia da palavra
quando o verso é grão,
é semente em estado de canção
e Gilberto Gil:
“… o amor é como um grão:
morre, nasce trigo,
vive, morre pão.”