Para nascer basta estar morto (Milton)

PARA NASCER BASTA ESTAR MORTO

MILTON MACIEL

 

O POCKER CORRIA SOLTO NA MESA 7 DA CLÍNICA SEIS. Os quatro jogadores pouco falavam, havia um clima de velório pairando no ar.

– Teus dois e mais quatro.

– Eu corro.

– Pago. Mostra.

– Trinca de valete

– Rabudo!

Norton chegou atrasado. Ia ter que esperar para entrar na outra rodada. Notou a falta de Camila. E o clima pesado, diferente, de… velório.

– Alguém morreu? Cadê a Camila?

– Camila se foi.

– Não teve jeito.

– Declarada irrecuperável.

– Mandaram pra Terra

– Reencarnada essa madrugada.

Norton deixou-se cair de joelhos, as duas mãos sobre as têmporas:

– Que desgraça! Justo agora que a gente tava começando a se entender. Eu… Puxa, eu estava gostando dela pra valer!

– Pois é, se foi.

– Não tinha mais jeito.

– Irrecuperável, sabe como é?

– Quando os caras da Clínica Seis desistem de alguém…

– Apelam, mandam de volta pra Terra.

– Foi hoje cedinho.

– Nasceu mulher. Preta.

– Legal que foi na Namíbia.

– É, legal, sem essa de preconceito.

 

De joelhos sobre o chão, mãos apertando a cabeça, Norton sentia a dor da perda estraçalhar-lhe a alma, a brutalidade do inesperado tornando tudo mais insuportável:

– Mas como? Como?!

– Acontece como todo mundo.

– Mais dia, menos dia.

– Pra nascer basta estar morto.

– Como nós aqui.

– Reconheça. Camila era barra pesada.

– Irrecuperável.

– Não teve jeito aqui na Clínica.

– Só nascendo de novo

– Mas… e eu? Não vou aguentar, vou enlouquecer!…

– Aguenta.

– Com o tempo, sabe como é?

– Tem que aceitar, dói menos.

– Pra nascer basta estar morto, já disse.

– Como nós aqui…

 

oooooooooooooooooooooooooooooooooooo

A escuridão envolveu Norton, esvaindo-se a consciência. Mas um ruído estranho, pouco depois, trouxe-o de volta à realidade. Viu-se sobre uma cama de casal, num quarto amplo, ensombrecida a luz do sol por cortinas espessas. O ruído vinha de um rádiorrelógio à mesa de cabeceira.

Contemplou o relógio longamente, ainda sentindo o desespero da partida de Camila. O painel mostrava: Domingo, 14, 8:32 hs.

Um barulho mais forte veio da peça ao lado. Norton deu um salto, assustado, surpreso. Havia mais alguém ali. Abriu a porta, viu esse alguém numa cozinha.

Era Camila!

–  Nossa! Acordado às 8 da madrugada de um domingo? O que deu em você, amor? Eu pulo da cama cedo sempre, você sabe, já dei minha corrida, tomei meu banho, estou preparando um cafezinho. Aceita um?

Camila! Camila estava ali, inteira, linda, resplandecente nos seus 40 e tantos, a cabeleira castanho claro pendendo molhada sobre o robe, viva, de carne e osso, muito mais carne do que osso. E ele também; estava vivo, da carne e osso, um tanto mais osso do que carne, precisava ganhar peso. Só que ele era um idiota, não dava mais valor a Camila, precisara passar por um susto desses para… acordar!

Tudo um sonho, maldição! Não, ele não tinha morrido, não estava numa clínica espiritual no espaço, não tinha conhecido Camila e se apaixonado por ela naquele lugar. Camila não tinha partido para a Terra e o deixado em desespero por lá. Camila estava… ali!

Jogou-se outra vez de joelhos, só que agora na realidade das lajotas da cozinha, abraçou-se à mulher pelas coxas, afundou a cabeça em seu ventre macio, sobre o robe branco. E falou:

– Adoro você, entende! Nunca mais me deixe pra viver noutro lugar, nunca mais!

– Que é isso? Pirou, amor?

– Pirei por você. Faz mais de 20 anos. Não tem jeito. Irrecuperável, sabe como é?

– Huuum… Declaração de amor antes das 9 de um domingo… só pode ser pra acender alguém como eu, seu danadinho. Pois deu certo. Vem, levanta daí, que eu vou levar você de volta pra cama. Mas não vai ser pra dormir, tá sabendo?

Camila tomou-lhe a mão, foi à frente, puxando-o:

– Siga-me, servo – sussurrou com voz insinuante.

– Até a Namíbia se for preciso, minha rainha – em êxtase, Norton quase flutuava. Que susto!

 

 

COMPARTILHE: