Poeira de Mamborê ( Joel )

 

Poeira de Mamborê

Joel Gehlen, crônica de quinta, AN 24/09

 

Por esses dias, amornaram-se umas nostalgias nos cavos mais fundas das minhas veias. Talvez tenha sido efeito das amoras subitamente adocicadas pelos sabiás-peito-de-fole, que tecem o anoitecer com o fio lúgubre que desenreda da sua garganta. A mão que colhe o pequeno roxo entre folhas de seda é a mesma que plantou a amoreira. A mão sabe o gosto da terra e intui a sina das primaveras. Nisso, estremunhou a infância gaúcha que dormiu lá na barroca grande, nas canhadas do Lajeado, onde ficou o primeiro telhado sobre o umbigo. O menino invisível foi percorrendo os mourões de angico da cerca que acompanha a longa estrada por onde andou, o arame farpado deixa ver, mas não permite passar para o outro lado.

Tudo isso ainda trago enquanto o mar de Mamborê, feito a pátina do tempo, fustiga as escarpadas têmporas. Lá vivi o plenilúnio da angústia, uma solidão tão consumada que a maior distração, quase um divertimento, era ir até o posto dos Correios, na casa de madeira com assoalho cru e porta de uma aba simples. Tinha aqueles armários de ferro com centenas de quadradinhos das caixas postais. Muitos anos mais tarde, encontraria a mesma simetria nos cemitérios verticais. Em pé, com um Conga furado no dedão, desfrutava aquela pequena glória deixando de ser invisível e podia pedir com voz acanhada se havia carta. Não para mim, que ninguém me escreveria naquele isolamento límbico. Dava o nome da Arlete, do Luiz, de Maria nossa mãe. Nunca tinha. Mas saía de lá quase com alívio, um arremedo de ânimo, como se portasse uma notícia. No caminho de volta, trocava passos sem saber aonde ir, não tinha um envelope no bolso, mas atravessava a Praça da Matriz onde todas as direções do vasto mundo riscavam o chão, surpreendia-me nas demoras indecisas, como se os olhos de céu me cruzassem, sem que os visse.

Um dia, juntei minhas coisas. Tudo coube com folga numa velha mochila da escola, com que desci sob os arcos da rodoviária de Londrina. Tinha três espinhas na testa, uma calça jeans sem botão, duas camisetas, uma botina de roça e aquele livro sem capa. E sonhos, os mais parcos. Tanto tempo depois e ainda não desembarquei na gare da primavera. Não sabia que na mochila da infância trazia Mamborê consubstanciada em poeira, como a luz de estrelas extintas.

 

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