Por que Josué se atirou no rio? (Jura)

Por que Josué se atirou no rio?

Jura Arruda

 

Nos fundos do Mercado Municipal ha? um rio. Nesse rio costumam boiar sacos de lixo, sapatos e espumas. Hoje quem boia e? o Josué?. Mortinho da Silva.

Quem viu primeiro e chamou a poli?cia foi o Tiago, aquele ali com um pano no ombro. Ele e? um tipo estranho, que faz o que estranho me parece: pega o peixe vivo, corta, limpa, vende. Depois pega os restos do peixe morto e devolve ao rio. Sei la?, jogar resto de peixe no rio… E? como cuspir no prato em que comeu, na?o e?? Mas aposto que ele nunca pensou nisso, e nem esta? pensando agora, porque corre a receber o carro da poli?cia que chegou.

O policial mais gordo e? o Timbo?. Nome de cidade, e ele nem nasceu la?. Mas ate? que tem cara de timbo?, mesmo, feito assim um Bo?. Bo? e? uma si?laba gorda, na?o e?? Enta?o, que nem ele. Mas quem toma a dianteira do caso e? o magrinho do lado, Dagoberto, delegado, coisa e tal. Ele vai ter muito trabalho porque a margem do rio esta? cheia de gente pra ver o corpo. O mercado ficou sozinho, nem comerciante, nem fregue?s. Quem esta? fazendo a festa e? a molecada da rua. O Chuca ja? se mandou carregado de fruta. E o Alema?o esta? babando com os brac?os cheios de biscoito recheado e pipoca doce.

A margem do rio esta? cheia de foto?grafos mandando flashes pra cima do Josue?. O delegado ouve as pessoas em busca de provas. E as pessoas na?o ouvem mais nada. Cada um esta? preocupado com sua pro?pria teoria para o caso.

– Va?o levar o Josue? pra fazer a exumac?a?o.

– Que exumac?a?o, Miguel? Exumar e? quando desenterra o corpo.

– E o que va?o fazer, Tiago?

– Bio?psia.

O Tiago na?o e? nenhum doutor em investigac?a?o, a gente percebe. Mas gosta de dar pitaco, ainda mais porque foi ele que achou o corpo e se sente dono do caso. Mas na?o sabe por que Josue? se atirou no rio. E nem sabe por que o Timbo? atirou o corpo daquele jeito na banheira.

– Porra, o Josue? na?o e? nenhum indigente! Respeita o corpo – falou.

– Respeita o caralho – ouviu.

O delegado olha de lado e torce o nariz. Ja? esta? acostumado com a falta de educac?a?o do gordo. Pergunta daqui, pergunta dali, e ja? tem um monte de informac?o?es que, em casa, vai chocar ate? descartar a maioria e ter uma linha lo?gica para o caso. Por enquanto, Josue? e? so? um corpo que apareceu boiando no rio, atra?s do mercado pu?blico.

Uma hora e tanto de disse-que-disse. A poli?cia vai embora carregando Josue? num saco, os moleques va?o embora carregando mercadoria na camisa, os comerciantes voltam ao mercado carregando cliche?s na li?ngua, os aposentados ficam la? na beira do rio, carregados de morte, da pro?pria morte, nos ombros cansados. Seu Hary solta uma frase e os outros abaixam a cabec?a em consentimento:

– A velhice e? a morte na margem de um rio.

Cada um que viu, ou que na?o viu, tem uma teoria e um depoimento a dar. O Calixto anda dizendo que o Josue? se atirou de desgosto. Um dia antes, viu o morto tomando uns goro?s no boteco do Schmidt. Tipo afogando ma?goa. Mas parece que a ma?goa tinha um fo?lego danado e Josue? na?o viu outra sai?da que na?o a de se afogar, ele mesmo.

A Ve?ia, como e? conhecida Dona Herta, diz que problema de fossa na?o era, porque Josue? tinha uma mulher e tanto. Ela, Dona Herta, a conhecia muito bem, porque pegavam o?nibus juntas. Devia ser problema com o filho, esse sim era um desmiolado. Faltava na escola pra ir jogar bola, e ainda batia nos meninos que na?o queriam ir com ele. Levava bola murcha dentro da bolsa e uma bomba pra encher. E o Josue? que, coitado, torcia pro Caxias, tinha, enta?o, dois motivos pra se matar de desgosto.

Outro que quer dar pitaco e? o frentista do Ipiranga da esquina. Pra ele, o Josue? se atirou no rio por causa de uma aposta.

– Ele, o Josue?, tava outro dia comentando la? que viu peixe no rio, sinal de que na?o e? ta?o polui?do assim. Lembrou ate? do ex-prefeito, o Luiz Gomes, que disse que ia despoluir o rio e mergulhar. O Quintal, que votou nele, endureceu o caldo e mandou o Josue? se jogar enta?o. Essa e? a histo?ria.

Ate? gente entendida de literatura e com tese nas ma?os quer dar discurso. Um discurso meio complicado, mas que Dagoberto ouve atento. A tese e? de um tal Ma?rio Campos, sai?do la? do Campus Universita?rio com diploma de mestre, e muito mestre, segundo ele mesmo diz.

– Senhor delegado, tenho o propo?sito de ajudar a elucidar este caso, ainda que na?o tenha presenciado tal fato, nem seja de meu conhecimento a i?ndole do suicida. Mas, veja bem: ouso chama?-lo suicida! Porque tenho como base uma teoria lexical que desenvolvi nos u?ltimos anos, durante meu mestrado em Letras. Acompanho atentamente os fatos da trage?dia, e coloquei-me a estudar os depoimentos que, de alguma forma, a imprensa teve conhecimento.

Enquanto o tal Ma?rio vomita o palavro?rio, o Delegado deita a sobrancelha, coc?a as te?mporas e segura o queixo. Depois de comentar o vazamento de informac?o?es como algo que acontece, toma sua postura de ouvinte e recebe a tese com uma grande e inquietante pulga atra?s da orelha.

– Vamos a?s minhas considerac?o?es iniciais, delegado. Por meio de um exame da selec?a?o do le?xico utilizado pelos depoentes, acredito ser possi?vel desvendar o caso. A mim, chama a atenc?a?o o fato de todos pronunciarem o verbo atirar. Sabemos, senhor delegado, que as ide?ias contidas em um texto surgem de um processo de construc?a?o natural, e inclui um certo devir, um saber inconsciente, concorda?

Dagoberto levanta a sobrancelha atento, mas ainda na?o sabe se concorda ou na?o. Vai ouvindo pra depois ruminar tudo e processar as informac?o?es que va?o dar a ele um roteiro pertinente.

– Pois e?, senhor delegado, verifique que o le?xico da morte, como alguns gostam de chamar, neste caso, e? o verbo atirar. Sabemos tambe?m que esta palavra dispo?e de apenas um u?nico sentido, e na?o da? a possibilidade de muitas predicac?o?es. Acredito que o verbo atirar na?o resulta do intuito de sustentar-se e mover-se sobre a a?gua. Ale?m disso, e? pu?blico o fato de que Josue? na?o sabia nadar. Enta?o, um indivi?duo que apresente esta caracteri?stica e que mesmo assim decida espontaneamente atirar-se na a?gua, levanta indi?cios de seu propo?sito de tirar a pro?pria vida. Seguindo este racioci?nio, atirar-se demonstra a intencionalidade da morte. O que o senhor acha?

Dagoberto balanc?a a cabec?a enquanto acompanha o pensamento de Campos, por fim, agradece e diz que a teoria sera? de grande auxi?lio nas investigac?o?es. Depois que o homem sai, ele pega todos os depoimentos e confere que o verbo atirar, de fato, consta em todos eles. Mas de onde vem tanta certeza? Algue?m sabe de alguma coisa que eu na?o sei!

O sol sai preguic?oso pras bandas do mercado municipal, vem como se na?o quisesse vir, ardiloso, em pouco tempo tomara? conta de tudo. Ardiloso tambe?m pensa ser o Tiago, que na?o pa?ra de lucubrar sobre o caso do Josue?. Logo o mercado estara? cheio porque e? sa?bado e o grupo Entre amigos tocara? seu chorinho semanal. A conversa na?o sera? outra sena?o a morte no rio.

O primeiro a chegar e? o Ferreira com seu olhar choroso e seu viola?o-sorriso. Ferreira ja? foi jogador de futebol, dizem. Eu na?o lembro de te?-lo visto jogar e na?o sei que habilidades ele tinha com os pe?s, mas conhec?o a habilidade de suas ma?os. Sentado em uma das mesas, ele afina o instrumento. O Tiago se aproxima e pede pra ele fazer aquele trechinho da mu?sica do Joa?o Bosco que fala de hemoptise num rio ou coisa assim. Ferreira pensa um pouco e manda em tom grave um “Ge?ge, tua boca de lixo, escarra o sangue de outra hemoptise no canal do mangue”.

– E? isso ai?! – comenta Tiago, e na?o ouve o resto da mu?sica.

Volta para a peixaria feliz de ter visto qualquer ponto de encontro entre a mu?sica e o rio atra?s do mercado. E essa e? toda a ajuda que ele dara? ao caso.

A mulher de Josue? continua abalada e ainda na?o foi depor. Essa informac?a?o percorre cada box do mercado e surgem os comenta?rios de que o Calixto tinha raza?o quando falou que o Josue? se atirou de desgosto. A reac?a?o da mulher era o melhor indi?cio de que ela tinha cometido um erro, e agora estava a?s voltas com um remorso sem fim. E na?o pode haver dor maior do que remorso acompanhado de morte.

A Mirtes, aquela entre um saco de batatas e uma caixa de cenoura diz que sa?o todos uns insensi?veis, e que a dor de perder o marido na?o carece de remorso pra acabar com a gente. A Mirtes perdeu o marido na?o faz um ano e ainda sofre com a ause?ncia dele.

As cozinhas exalam um misto de fritura e peixe cru, e as caixas acu?sticas emanam as notas de um samba que o Gauchinho ouve saudoso enquanto acena para o u?ltimo aluno de cavaquinho que deixa a sala. Aos poucos o Josue? vai saindo do mercado, volta ao rio e o sa?bado transcorre normalmente. Domingo, a televisão vai levar os pensamentos de todos para uma esfera mais ampla de celebridades e fama; segunda-feira, a morte vira passado e o Josue?, engavetado no IML vai esperar seu enterro. Embaixo da terra, em seu caixa?o, na?o cabera?o todas as teorias e investigac?o?es, porque la?, do ladinho dele, e so? com ele, estara? o miste?rio de sua morte. Talvez nunca ningue?m saiba por que Josue? se atirou no rio.

Aos poucos, os peixes e Josue?, que ja? dividiram a sensac?a?o de estar no fundo de um rio, va?o se cruzar num caminho avesso. Os restos do homem que foi encontrado boiando apodrecera?o embaixo da terra, e os restos do peixe que o Tiago limpou, apodrecera?o boiando no rio. O mercado encontrara? outros assuntos e o delegado se aposentara?. Timbo?, talvez va? conhecer a cidade em que na?o nasceu. O filho de Josue?, quem sabe, aprenda a furtar biscoitos e pipoca doce. E, por fim, mais um prefeito prometera? limpar o rio, onde todos os dias  boiam sacos de lixo, sapatos e espumas.

Hoje quem boia no rio e? o esquecimento.

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