Quem matou o rio? (David Gonçalves)

QUEM MATOU O RIO? 
David Gonçalves
O rio nasceu. Água límpida, brilhante, gostosa. Desceu encosta abaixo molhando a terra, cheio de curvas, pedras, plantações, serpenteando. Passava por um trigal, um milharal, um pomar, uma mata virgem, uma cachoeira. Era pequenino. Mas foi crescendo, crescendo. Os moleques tomavam banho nele escondidos das mães, as mulheres – ricas, pobres e miseráveis – lavavam roupa sob sol e chuva, os porcos bebiam e se refrescavam na água, os bois matavam a sede e curavam suas aftosas.
O rio corria. Era manso, alegre. Só ficava brabo quando chovia demais. Aí o danado falava alto, grosso, rodava troncos, árvores, pontes, pinguelas. Certa vez, rodou até um boizinho amarelo recém-nascido. Mas logo voltava como era: calmo, bacana, cheio de vida. Nele, os trabalhadores pescavam aos sábados e domingos.
O rio tinha medo numa curva. Quando chegava lá, corria de mansinho. Ali tinha uma cobra sucuri que engolia sapos, bois, gente. O povo daquele lugar, quando ouvia o piado da maligna, ficava de cabelo em pé. Por isso, o rio tinha medo. Quem não tinha? No seu leito, muitos andarilhos desfaziam-se do cansaço das estradas empoeiradas, lavavam as feridas brabas.
O rio tinha poder. Quanto mais corria, maior ficava, mais belo também. Sobre as águas, canoas, barcos, chalanas, cargueiros – tudo passava. Ouvia as histórias dos pescadores, dos marujos de água doce. Cada história de arrepiar o cogumelo! Mortes, tiros, almas penadas, amores despeitados, amantes traídos. Ele ouvia, mas não contava para ninguém. Um rio não é fuxiqueiro, não.
Afogamentos? Virgem! Toda semana. Epa! Que culpa tinha? Tentava jogar os corpos em agonia para os barrancos. Às vezes, conseguia. Mas não era fácil. O mais engraçado era o prato com velas colocado nos remansos para achar o morto. Colocavam o prato aqui e o morto estava enroscado longe. Então, ele pegava o prato e conduzia-o para o local. Ninguém agradecia. Não precisava de agradecimento. Para quê? Ele tinha vida. Isso era tudo. A pior coisa era ter morto no fundo enroscado nos galhos, atolados, com a barriga esticada. Credo!
Sentiu-se, um dia, ameaçado. As águas já não eram claras como antigamente. Com as chuvas, ele voltava ao que era. Vieram homens estranhos, com instrumentos estranhos. Mediram, apalparam, mergulharam. Foram embora. Depois, voltaram. Montados em tratores, pás carregadeiras, homens com a cabeça enfiada em capacete. Sirenes, apitos, vozerio… Tantas coisas estranhas. De repente, matas que o escondiam e protegiam já não existiam mais; os animais selvagens, que vinham beber e tomar banho, não existiam mais; os pássaros, que alegravam a cantiga das águas, não existiam mais; os pescadores simples, com os moleques barrigudinhos, não existiam mais. Tudo havia mudado. Estava tudo diferente. Fizeram uma grande ponte, uma grande fábrica nas suas margens, uma grande usina. O rio ficou nervoso. Bufava enraivecido por qualquer chuvinha. Sentia-se preso, sujo, fedorento, os peixes morriam sob as águas. Então, ele xingou a mãe de todos, derrubou pontes, a fábrica, a usina, o vilarejo ribeirinho. Voltou a correr livremente, como era seu destino.
Mas o homem não desistiu Fez outra barragem, outra usina, outras fábricas. E o rio sentiu-se preso, doente, sujo de borra, os peixes minguando. Não bastasse, jogaram bombas no seu leito, esborrifaram veneno nas plantações, e suas águas ficaram envenenadas também. Assim mesmo, o rio não quis morrer. A todos que passavam por suas margens, implorava. Mas poucos, quase ninguém, entendiam os lamentos. Eram surdos; eram cegos. Só o pescador do barranco conhece os segredos do rio. Ele é barro vermelho do barranco, irmão do rio. Mas o que pode fazer o pescador? Nada. Pois, para entender um rio, é preciso muito amor, muita paciência, muita sabedoria. O rio fala. Mas tem outra linguagem.
Desiludido, quase sem vida, viu que suas águas eram negras, podres, com enormes poças de óleo queimado. Ainda teimava em gritar, mas os gritos eram frágeis, inaudíveis. Ninguém queria salvar o rio. Ora, poucos acreditam que um rio tenha vida. Sobre suas águas, pairavam garrafas de plástico, pneus rombudos, colchões velhos, fetos apodrecidos, até sofás. Então, o rio morreu.
– Vê, filho, este rio está morto. Eu vou te levar para as montanhas e mostrar as águas claras, o orvalho, as cachoeiras. Aí você entenderá as coisas do homem: a ambição, o progresso, a força. Porque a única coisa que o homem não sabe é viver, filho.
Não houve enterro, não houve reza, nem padre, nem cortejo. O rio morreu. Morreu o rio. Morreu.
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