Ramos dos Anjos: benzeduras à lua

Sem outra novidade, disponho de recorrente anunciação: amanhã é lua cheia! Uma “lua tão redondamente grávida”, como escreveu a poeta Mila Ramos dos Anjos, que na última terça, atendendo ao pendor secreto, deixou de estar entre ramos para tornar-se inteiramente Anjos. Conheci-a numa daquelas sinucas que o jornalismo às vezes nos coloca. Dona Zelândia – como a tratavam – estava à testa de uma operação da prefeitura contra a qual a imprensa se arvorava. Marquei uma entrevista, quando sentamos para conversar em seu gabinete, perguntou se me importaria que gravasse a conversa, para poder se defender no caso de suas palavras serem distorcidas. Anuí. Recém-chegado a Joinville, não disse nada, mas por dentro uma pergunta me roía: com que fim alguém violaria suas declarações? Ali selamos uma cumplicidade duradoura, feita seu poema “Benzedura”.

Embrulhadas pelo celofane da infância, as benzeduras estão em meu relicário da memória. Eram mulheres negras que não tinham nome, no mais das vezes viviam solitárias em casebres à franja de matas. Ia acometido, tangido por mão de mãe ou de irmã. Andávamos pelas macegas, por carreiros de gado, até seu rancho precário, de terreiro pouco e cercado provisório, onde se viam feijão de corda, milho de espiga, cana-da-índia, galinha-d’angola e chuchu nos baldios. O canteiro das sete ervas exuberando à porta. Piso de chão batido, cadeira de palha, altarzinho na penumbra que a luz untuosa da janela não debela. A benzedeira deposita um beijo em Nossa Senhora, faz um “pelo-sinal” e me desenha na testa os cardeais da cruz. Sua voz é um murmúrio de águas em córregos doces. No rezar, imitava o mar, num ir e vir de palavras em ondas nas quais, por vezes, eu captava o dizer de um nome de erva, de um santo de casa, o meu e ou o nome de Deus. Com o galhinho de alecrim, ia desenhando-me a rosa dos ventos sobre a cabeça e abrindo os caminhos que ainda hoje cuido percorrer. A doçura daquela voz, o carinho daquelas mãos tão rudes e afáveis e o cheiro de arruda inundam-me a vida inteira.

Entre ramos, Mila dos Anjos, mira-nos essa lua gêmea que se avizinha prenha de mistérios. E a voz imorredoura das benzeduras rezadas na essência dos afetos faz saber que nada fica, mas também não deixa de ser, depois de ter passado.

COMPARTILHE: