Rasto de onça (Zabot)

RASTO DE ONÇA

No tempo em que se andava descalço, e não vai tão longe assim, o rasto fazia parte do cotidiano, digitais do mundo sertanejo.  Além de rasto de gente, havia rasto de rolinha, de paca, de montaria, de onça, de cobra, e de tudo que é mais vivente pés-no-chão ou arrastando-se.  Menos saracura… não deixa rastro pois vive saltitando n’água. Após as chuvaradas, traços acentuavam-se.  Joaozinho preferia a sutileza dos cafezais, mas, invariavelmente, lá ficavam explícitas as pegadas, entregando-o. Neil Armstrong, astronauta americano, mais ousado, porém devidamente protegido, deixou-os na lua. Sola de botina. E, nos sertões, lampião invertia as alpargatas, confundindo assim a volante.

Dió – sertanejo da gema -, era craque na arte de interpretá-los. Sabia até de quem era. Aprendeu isso lá para as bandas de Sergipe. Era sergipano. Brincava: – O único estado brasileiro com pretensão de ser veículo. Em quando alguém perguntava: Tudo bem, como vai Dió?! Invariavelmente a resposta: – fazendo rasto amigo, graças a Deus! Dió preferia, no entanto, andar de montaria, mula de sete palmos de altura. Perspicaz, Cícero não se continha: – Fazendo rasto, você ou mula, Dió! Gargalhada das boas.

Quando ia caçar, Dió identificava a caça pelo rasto. Desenvolveu traquejo próprio. Exibia-os. Traços sutis, quase imperceptíveis entregavam a presa. Dió nem precisava de cachorro de caça. – Isso é pra preguiçoso, costumava dizer. As pegadas de onça, essas não o assustavam. Se frescas, ainda anda por aí, nestas horas andeja no espigão; mais apagadas, opa! perigo, pois pode estar de volta.  Onça tem mania de seguir varas de porco do mato, tateto ou queixada, ou manada de quatis. Teme queixadas, porém…suas presas afiadas. Daí Preferir tatetos.

Emílio, o mineirinho caçador emérito, este quando o rasto era recente, continha os cães de caça. Nestas horas, ouriçados, farejando, uivavam. Faro alto, vestígios, catinga de bicho. Partiam à toda.

Naquela manhã um bando de caçadores seguia ao encalço dos cães que, do nada, levantaram corrida. Seguiam pelo picadão de anta, trilha inconfundível. Negaceavam. Cartucheiras engatilhadas.

Quase se ferram, pois ao parar para ouvir o latido dos cães, a direção a tomar, um chiado de guizo os recebe inamistosamente. Poucos passos à frente cascavel enraivecida os aguardava para o bote fatal.  Salvos, pelo gongo, a abatem… tiro certeiro.  Refeitos, seguem adiante, agora no rumo certo. Por ali, as antas eram bastante comuns e, do nada, surgia um bando. Carne boa, disputada.

Lembro-me do carreiro delas, trilhas de chegada no rio Sarandi. Tantas vezes acessavam ao bebedouro que o trecho foi se afundando, afundando conforme variava o nível das águas. Na estiagem, lá embaixo, nas cheias, lá encima, na boca da trilha. Aí ficava fácil. Mais fácil ainda para Dió. Fazia campana por ali. Dió era seletivo. Só abatia uma, sempre escolhida a dedo. Nada de exagero. Apreciava carne de sol. Charque do nordeste. Era comum tiras de carne secando no varal. Vida farta, acomodada. Com o tempo, porém, o desmatamento, a presença de outros caçadores, foi-se a fartura.

Amâncio preferia a ceva, local adrede preparado. Ali deixava sal, e algumas espigas de milho. Ao lado erguia um girau, coisa de 10 metros de altura.  Em cima, a casamata, o esconderijo. Noite alta campanado, lanterna à mão, era só aguardar. Bom de tiro, nunca desperdiçava chumbo.

Ah, e tinha a ceva de peixe, em geral no remanso do rio. Mandioca, batata-doce e milho por vários dias, depois era só lançar a rede.

Lances folclóricos nunca faltaram, porém. Caso do Juvêncio, peão de fazenda, naquela noite de tocaia, no girau, aguardava a caça como de costume.  Altas horas da noite, estranho, nada de caça. Silêncio sepulcral.  Nem uma folha se movia. Pressente, no entanto, subitamente o pior… de onde vem aquele resfolegar.  Alça a lanterna, nada de caça na ceva.  Gira o foco para ao pé do girau, não acredita no que vê. Sem o que caçar, a onça meteu-se a expiá-lo. Arranha, tentando subir no girau. Espingarda pica-pau. Atirar ou ficar quieto. Ou berrar, tentando afugentá-la. Opta por atirar. Mira entre os olhos do felino, puxa o gatilho. Acerta, mas não o abate de primeira. Debaixo do girau arma-se um escarcéu. Uivos medonhos, a fera arranca tudo o que agarra por ali. O girau treme, resiste precariamente. Vê a viola em caco, Juvêncio. De imediato, o silêncio. Nada mais enxerga. Só no dia seguinte percebe que a fera tombara. Escafedeu-se sorrateiramente. Nem a pele aproveitou. Vai que outra o apanha. Depois daquela refrega nunca mais voltou à mata. Ora, fui caçar paca, e não onça, dizia a boca pequena.

Assim reportava-se ao fato, Dió. Mas como história de caçador e pescador, sempre tem um traço de destreza, lá saber a verdade. Uma coisa era certa, no entanto, Dió continuava fazendo rasto, mesmo que fosse nas patas da sua mula de estimação.

Agora não mais caçava ou pescava – fazia questão de espalhar aos quatro ventos -, mas, sim, criava porco cevado no mangueirão e, num açude ao lado de casa – carpas.

– Pra que andar tão longe, se posso ter criação por perto. Dió era assim: cheio de causos e trololós!

 

Joinville 9 de maio de 2020

Onévio Zabot

 

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