Um outro presente (Salustiano Souza)
UM OUTRO PRESENTE
Salustiano Souza
Balthasar estava absorto, sequer percebendo o sacolejar do camelo. Tentava entender Herodes, que, apesar de tão gentil e amável, deixava transparecer algo de maldade. Por conta disso repisava os passos da jornada até Yerushaláyim na tentativa de encontrar alguma explicação. Relembrava a recepção ofertada, o excelente vinho adormecido em odres, farta mesa de exóticas frutas, figos, uvas e tâmaras, romãs e damascos, amêndoas e pistaches, o lauto jantar, guisados e seus temperos, caças preparadas em molhos agridoces, todas essas coisas que só os romanos sabiam fazer. Realmente Herodes era ótimo anfitrião.
Mas o que intrigava não era essa amabilidade, e sim o seu conhecimento da torá e dos sagrados livros judeus. Apesar de romano ele conhecia em profundidade as profecias, citou os profetas Shemuel e Yeshaiahu, falou da profecia desse último, que predizia o nascimento de um rei em Bethlehem.
— Se tiverem a graça dos deuses em prestar reverência a este rei, vão logo e me avisem, pois também pretendo honrá-lo.
Para Balthasar as palavras soavam falsas, tinha a intuição de que algo não ia bem. Tão absorto estava que sequer percebeu a chegada ao acampamento, fora dos muros da cidade. Os serviçais acorreram para sentar os camelos e eles desceram com vagar, dada a idade. A escrava de olhos amendoados derramou água nas mãos estendidas, enquanto
outra secava-as delicadamente. Balthasar tomou a taça da bandeja e serviu-se de vinho enquanto contemplava o horizonte mesclado de vermelho e alaranjado, confundindo-seentre céu e deserto.
Melchior e Ghaspar serviram-se de vinho também, mas retiraram-se sem dizer palavra, absortos que estavam. Balthasar pediu seus apontamentos e sentou-se ao lado da tenda, queria perscrutar o céu, talvez reencontrasse a estrela que os trouxera e que havia desaparecido ao entrarem em Yerushaláyim. A fria aragem prenunciava o início da noite, a penumbra ia miscigenando lentamente formas e imagens. A escrava dos olhos amendoados lhe colocou o manto sobre as costas, adivinhando a necessária proteção do frio, enquanto outros escravos acendiam archotes ao redor das tendas. Contemplando o céu de betume entremeados de estrelas, Balthasar continuava alheio a tudo.
— Um naco de pão para um andarilho, escutou admirado a voz perto. Como havia passado pelos guardas? Ficou olhando a forma que se aproximava, homem de meia idade, rosto moldado pelo sol e vento, prenunciando fome, forasteiro de difícil predizer origem. Apontou para a grande tenda:
— O cozinheiro lhe dará algo… Penso que é melhor uma sopa, emendou ao sentir a aragem.
— Você também é forasteiro, vem de longe?
Balthasar admirou-se com a afoiteza do andarilho. Geralmente ao ver sua posição e suas roupas fariam mesura e falariam com timidez.
— Venho do sol nascente, falou, perscrutando com melhor atenção o rosto do forasteiro, que lhe pareceu perspicaz.
— Oriente… disse ele com vagar. — Trago novas de lá.
Balthasar redobrou a curiosidade.
— A estrela surgirá e mostrará o rei em Bethlehem, falou o forasteiro pausadamente. – Não voltem no mesmo caminho, Herodes quer matá-lo. Urge que partam hoje…
Como a validar a fala uma pequena luz no horizonte começou a delinear-se.
Balthasar continuava admirado, como ele sabia de tudo? Aos poucos a estrela ganhava contorno no horizonte apontando na única direção. Baixou os olhos ao forasteiro, mas este já não estava mais. Perturbado, chamou os serviçais, sem sucesso. Reuniu-se com Belchior e Ghaspar.
— Faz sentido, falou Belchior, o prudente, — um rei aqui nascido abalaria Roma e derrubaria Herodes.
— Vamos partir, falou Ghaspar, tenho premonição…
Após instruções à comitiva para acamparem fora dos muros de Bethlehem, partiram na noite fria. A estrela se erguera a meio céu, iluminando o pedregoso caminho. O tremeluzir de archotes ao longe mostrava Bethlehem dormindo no silêncio. Os portões cerrados não davam passagem a forasteiros, mas a posição dos Magos eram credenciais.
Nortearam seus camelos em direção às casas mais nobres, no aglomerado da cidade, mas a estrela parecia ter se detido fora dos muros, distante do povoado. Indecisos, passaram pela cidade e foram vagarosamente em sua direção. A cidade foi ficando para trás, apenas camponeses moravam aqui, o frio silencioso não oferecia pistas, uma pequena
réstea de luz mais à frente, como se fosse continuação da estrela.
— Isso não está certo, falou Ghaspar, ao ver a simples estrebaria encravada nas pedras, — um rei não se prestaria a isso.
Mas Melchior e Balthasar já estavam entrando na estrebaria.
Uma pequena fogueira a um canto, alimentada por alguns pastores, animais alheios ao fundo e bem ao centro um cocho com feno e capim. Sobre ele um recém nascido com uma mãe de olhos arregalados, embora ternos, tentando entender o que ocorria e um homem, não novo, de olhar submisso, assimilando o espanto.
— Yehi Elohim Modeh, saudou Balthasar, evocando o louvor judeu ao entrarem nas casas.
— Baruch HaShem Adonai, responderam vozes baixas no emaranhado de tons, voltando-se todos para os visitantes e os bendizendo.
Ao perceberem que eram nobres ajoelharam-se, enquanto Maryam os fitava com maior espanto. Ainda nova, de rosto afogueado, não sabia como proceder, enquanto os pastores tentavam manter a pequena fogueira acesa.
Os magos ajoelharam-se frente à criança enquanto os serviçais trouxeram os presentes depositando-os aos pés da manjedoura: ouro, incenso e mirra. Balthasar, ao contemplar o infante nu, percebeu que seus presentes não teriam grande utilidade naquele momento. Despiu-se do manto bordado em ouro, tomou a criança nos braços e a envolveu, aquecendo-a.
— Já tem nome? Perguntou, dirigindo-se à Maryam.
— Emahnoel, respondeu ela, corando.
— Eu te bendigo Emahnoel, governarás sobre a descendência de Yaákov e sucederás o trono de Dawidh, falou ele, curvando a cabeça em reverência.
Belchior e Ghaspar também se curvaram. Entregou a criança envolta no manto real à Maryam.
— Bendita sois vós e bendito é vosso fruto.
Maryam tomou seu rebento nos braços, uma ternura sem igual fez seus olhos lacrimejarem, o universo lhe alçara à condição sagrada de mãe. Yosef pareceu entender, seus olhos se enterneceram ao perceber que teria semente.
Vagarosamente Ghaspar tirou a mitra, pequena tiara em ouro que lhe circundava a cabeça e lhe conferia o status de soberano e o colocou na cabeça de Emahnoel, que se remexeu ante o estranho e largo objeto.
— O universo lhe outorga a condição de rei e nós a reverenciamos. Bendito o que vem em seu nome.
Belchior por sua vez tomou seu cetro de ouro ornado com figuras em marfim e colocou nos braços de Maryam, junto ao menino.
— É mister que um rei tenha cetro para governar, falou em voz baixa.
Maryam e Yosef apenas olhavam, cada vez compreendiam menos. Primeiro o forasteiro que lhes aparecera falando essas coisas, agora esses nobres as repetindo, eles estavam cansados da longa jornada, ela quase desfalecia, tudo o que queriam era descansar. Alheio a tudo, Emahnoel dormia placidamente. Balthasar, Belchior e Ghaspar prestaram nova reverência e retiraram-se.
— Tome, falou Yosef num misto de coragem, ofertando a Belchior seu cajado de peregrino. Este inspecionou-o com cuidado, ramo de acácia nozado colhido nos outeiros de Názerat com o semicírculo superior moldado em muitas fogueiras. Agradeceu com o olhar e, moroso, subiu no camelo.
No silêncio da noite suas figuras foram se desvanecendo na penumbra enquanto o vento entoava mansamente:
— Um menino nos nasceu, um filho nos foi concedido…
Novembro/2023