Você já leu Gabriela? (Hilton)

VOCÊ JÁ “LEU” GABRIELA?

Hilton Görresen

Gabriela, Cravo e Canela é, no meu entender, o mais delicioso livro de Jorge Amado. Foi um dos primeiros que li na adolescência. O ideário comunista, que o autor seguia, trouxe para a literatura a valorização dos membros das classes baixas.

Mas quero conversar sobre a leitura e sua outra face, a escrita. Houve um tempo em que a linguagem era considerada “espelho do pensamento”. Era a época dos parnasianos. Escrevia-se para demonstrar as “pérolas” do pensamento do escritor, com vocabulário raro e sintaxe arrevesada. A frase tinha de ser bela, rebuscada. Se o leitor não entendesse, azar. Época do “lábaro que ostentas estrelado”.

Com o avanço dos estudos linguísticos, voltados para a compreensão do texto, entendeu-se que a linguagem – apesar de continuar expressando o pensamento – tem como função importante a interação. Interação entre o escritor, o texto e o leitor. O leitor não é um ser passivo, que apenas recebe informações codificadas e as decodifica.

A leitura ativa nossas lembranças, sentimentos, reflexões e conhecimentos do mundo.  O que significa que a leitura de Pedro não é a mesma de Paulo. Quem escreve (e recebe comentários) sabe que, muitas vezes, o leitor valoriza passagens do texto que para o escritor foram apenas detalhes. Se o texto menciona a mangueira sob a qual o personagem descansa, alguns se transportarão à infância, à sombra acolhedora da “sua” mangueira. Há textos que são interpretados por um tipo de leitor como crítica; por outro tipo, como lição de vida; por outro, ainda, como uma simples historinha.

E o que tem isso a ver com Gabriela, a morena cor de canela?

Alguns leitores poderão “ler” a sucessão dos capítulos do livro como um romance entre o comerciante Nacib e a inculta e sensualíssima cabocla, não deixando de lado as intrigas e maldades que determinarão os vilões da narrativa (inconcebível narrativa sem mocinhos e vilões).

Outros, com interesse histórico e sociológico, verão na história um painel da década de 1920, com seus costumes e preconceitos. Já leitores mais maduros poderão entender a essência da obra como um conflito entre os valores tradicionalistas ultrapassados (machismo, poder do coronelismo, submissão feminina) e os ventos da modernidade que começam a se infiltrar nas brechas daquela estrutura carcomida.

Cada um lê conforme é. Por isso se diz que, uma vez publicada, a obra não pertence mais ao autor.

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