Outeiro das vértebras incandescentes (Joel)

Outeiro das vértebras incandescentes

crônica de quinta, Joel Gehlen

Entre a colina e o mar, o outeiro das vértebras incandescentes impõe sua corcova de crespa luminescência. Joinville tem ruas desastrosamente assimétricas, alguns cantos do mapa da cidade mais parecem a cabeça da Medusa, com suas linhas serpenteantes e abruptas. É sempre incauto percorrê-las, mesmo quando te parecem familiares. De repente, trancam sentidos, viram mão única, proíbem conversão à direita, terminam no aclive de terra. Quando menos se vê, estamos onde não queríamos estar. Claro que a zanga impacienta e forja um impropério na garganta. Diacho!

Então, é preciso proceder à fabricação da calma, sentir o seu efeito benfazejo crescente sobre a respiração e o corpo. Sacar dos olhos e enxergar. Está lá, a face leste do monte Boa Vista, uma longa franja de floresta rendada em verde, no instante em que a montanha se ajoelha para a baía, onde nascem os sóis de cada dia. E longe do alcance da vista, pode-se pressupor o mar que lateja e se estira, também genuflexo em cada onda que deita à areia da praia. A brisa traz notícias de peixes em cochichos de salsugem. Vestígios náufragos de algas e sal. Entre a colina e o mar se avulta o Cemitério São Sebastião do Iririú. Tristonho, baldio, inóspito como sói apresentar-se um campo dos ausentes nos intervalos sem enterramentos. Cobre-nos o tecido do silêncio, e os motores do mundo estão desligados.

Por um instante, despeja a calma e a bem-aventurança dos Salmos sobre essa rua que não sei o nome. Uma aragem densa corre seus dedos por entre as folhagens sussurrantes, ouve-se o matraquear do labor nas garagens arrabaldinas. De todos os contornos do universo, o Sol escolhe depositar seu beijo mais ameno sobre a vértebra cemiterial. Esse sol de fim de inverno, que é todo ternura, cintila e flutua e nos traduz o âmago do instante em que se despede. Não se trata apenas da paisagem desnudada e sem os freios de nuvens, mas é o coração que se percebe desoprimido na obliteração das amarguras. Enfim, livra-se dessas pequenas raivas do cotidiano que fazemos questão de destilar, embora esfumem a razão, tolham a sensibilidade e soneguem o que há de mais essencial em estar do lado certo das cercas dos cemitérios.

 

COMPARTILHE: