📖 “Flunflação” (Hilton)

FLUNFLAÇÃO

Hilton Görresen

 

Ainda não inventei a palavra acima. Teria alguma coisa a ver com inflação? Não sei, o sentido das palavras às vezes engana, muitas não são o que parecem ser. Lutulento, por exemplo, nada tem a ver com luto. Negacear, nada com negar. Mas diga-me uma coisa: se já houvesse sido inventado, qual seria a ação referente ao verbo “flunflar”? Flunflo, flunflação ou flunflamento?

Quem pode saber, não é mesmo? Existem várias opções em nossa língua para a formação de derivados, todas legítimas.

O que determina, então, que seja adotada uma dessas opções como “correta” e outras sejam refugadas como erro? A própria língua, pela ação de seus falantes, ou seja, nós mesmos. A lei do uso. Do verbo despertar, você poderia derivar os substantivos despertamento, despertação, ou quem sabe despertagem. No entanto, o uso convencionou que se fique mesmo com “despertar” (lembram da musiquinha de propaganda de um cobertor: “…e um alegre despertar”)?

Do verbo aceitar, a língua conservou “aceitação/aceite”, desprezando a forma aceitamento. Já o verbo assentar prestigiou “assentamento” e não assentação. E acertar ficou com “acerto”. Não é estranho?

O verbo salvar ficou com salvação e salvamento, mas com sentidos semanticamente diferentes: você pode efetuar o salvamento de um afogado, mas não de sua alma, que clama por salvação. Diferença “salvou” diferenciação e diferenciamento, mas jogou no lixo diferençagem. Pecado nos deu atos pecaminosos e não pecadosos, mesmo que ambos possam nos levar ao fogo do inferno.

Algumas formas permanecem instáveis em sua derivação. É o caso do verbo fazer. Como traduzir sua ação: fazimento (que horrível!) ou feitura? E trazer? Trazimento ou trazida?  Se, de responder, deriva resposta, por que corresponder fica com correspondência e não com “corresposta”?

Derivados se formam também por analogia ao que já existe. Como denominar um desfile de carros com intenção de reivindicar algum direito? “Carreata”, por analogia a “passeata”. E a manifestação por intermédio de buzinadas? “Buzinaço”, talvez por influência de “estardalhaço”. E já se criou “panelaço”, pelo mesmo motivo. Sambódromo, fumódromo e afins  seriam por analogia a hipódromo, mais antigo?

Quem sabe, uma provável manifestação por meio de silêncio venha a denominar-se “silenciaço”.

Que uma coisa fique clara: derivações que não são acatadas pelo dicionário não são erros. São simplesmente opções não preferidas, votos vencidos nas decisões de linguagem.

 

TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A GAZETA DE SBS EM 05.12.2020

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