📚 “Carmen” (Raquel)

CARMEN

          Raquel S.Thiago

 

Em comemoração aos 170 anos de Joinville e ao   Dia Internacional da Mulher.

 

        Um dos aspectos que mais me fascina e proporciona prazer intelectual está em estudar o fenômeno migratório do ponto de vista do migrante,  naquilo que é possível  desvendar sobre seus sentimentos, emoções e capacidade de se reinventar.       Para boa parte dos (I)migrantes  não é simples o processo de desenraizamento do  lugar de origem e  enraizamento numa cidade como Jonville  onde tudo está estabelecido no que diz respeito à organização social e política, valores, costumes…….

Pode-se dizer que Joinville é uma espécie de “terra da promissão”, haja vista sua história de receptora daqueles que buscam novos rumos para suas vidas e das suas famílias. Foi estudando esse processo que percebi os dilemas do (I) migrante para além da simples luta pela sobrevivência.

Os imigrantes do século dezenove e seus descendentes construíram   uma história envolvida com os acontecimentos do mundo, num fluxo compatível com as forças nacionais, regionais e locais que interagiram para tornar Joinville uma cidade próspera, de porte médio, e população superior a meio milhão de habitantes.

Nessa circunstância Joinville, a partir dos anos 1970, tornou-se importante polo de atração de novos (i) migrantes  em busca do abençoado ganha-pão, especialmente no setor industrial, construção civil e de serviços.

Assim como em outro trabalho busquei estudar e entender a problemática da identidade num processo de localização espacial dos imigrantes fundadores da Colônia Dona Francisca no  século   dezenove, agora procuro, por meio de entrevista/reportagem pensar sobre o migrante do século vinte, no que diz respeito à sua relocalização numa cidade de porte médio, populosa, espaços ocupados e instituições consolidadas ao longo do tempo.

Há que se admitir as implicações que envolvem o migrante nessas circunstâncias, como o estranhamento, o desenraizamento de onde veio e o complicado processo de enraizamento e construção de uma relação com o novo espaço.  Nessa ótica, este artigo apresenta entrevista/reportagem com a imigrante chilena Carmen Rodriguez .

 

                      Quando cheguei em São Paulo

                        minha bagagem era quatro filhos e duas  malas “

 

Carmen é chilena e chegou no Brasil em 1977 trazendo os quatro filhos para encontrar-se com o marido Victor ,  instalado no Brasil  alguns meses antes para trabalhar numa empresa de Santo André (SP).

 

 Quando cheguei em São Paulo minha bagagem era quatro filhos e duas malas “.  Foi no tempo do Pinochet. Porque o golpe de Estado já havia acontecido fazia 3 anos e todo mundo pensa que viemos por causa de problemas políticos na época. Foi e não foi. Como é que eu posso te falar”?

 

As lembranças de Carmen levam-na para a década de 1970, quando no Chile a repressão da ditadura militar   estava no auge.  Em setembro de 1973, o então Chefe das Forças Armadas chilenas, Augusto Pinochet, comandara um golpe militar e derrubara o presidente Allende, o primeiro governo socialista democraticamente eleito da história.  Repressão política e desemprego representavam inúmeros problemas para o casal que já aguardava o quarto filho, de modo que não foi difícil optar pelo Brasil onde havia boa oferta de trabalho qualificado.

 

     Depois do golpe meu marido e seus colegas, todos jovens recém-saídos da universidade foram muito perseguidos, e a gente teve de sair da cidade de Concepcion, que é minha cidade natal e a de meus pais, e fomos para a cidade de Temuco no sul do Chile que fica a 400 quilômetros, ficamos na fazenda do meu sogro. É que meu marido havia frequentado a faculdade de sociologia e de economia e ali aprendeu tudo que é tipo de marxismo no tempo do Allende.

 Então o governo, já de Pinochet, avisava   via rádio, via televisão, que todos os estudantes que estavam para se formar naquele ano se apresentassem na Universidade de Concepcion, onde receberiam o certificado de conclusão, o diploma, não é? Mas meu marido tinha sido avisado que a polícia estava esperando na Universidade e tratou de alertar os colegas.  

 –  olha, não vão, porque tem polícia e estão esperando a gente se apresentar. De muitos deles nunca mais soubemos.  Desapareceram. Eles foram levados para ilhas em alto mar. Eram levados, isso foi confirmado depois, eram levados de avião, naquelas cisternas de onde jogavam água quando tinha incêndio nas florestas. Abriam as comportas e jogavam os prisioneiros no mar.

      Victor salvou-se mas perdeu o emprego, como posso te explicar? Aquele emprego ele tinha conseguido por meio da Igreja Católica, porque eles sabiam que ele não era comunista, não estava inscrito no Partido Socialista, nada disso. O que aconteceu? Os patrões dele foram tão intimidados que ele teve que sair da empresa. Depois ele foi para Santiago, mas vimos que não dava, que as empresas estavam começando a fechar, estavam nacionalizando a empresa americana de cobre e tudo, aí chegou um momento que não tinha mais emprego, e o Brasil pedia mão-de-obra estrangeira, engraçado, em 1977 eles pediam engenheiro mecânico, pediam médico, pediam muitos profissionais, e já davam o visto de permanência de lá.

No Brasil onde também imperava a ditadura, mas já num processo um tanto mais brando, sentia-se, ainda, os efeitos do “milagre brasileiro” quando a economia apresentou expansão extraordinária, em seis anos consecutivos (1968-1973). Já a partir de 1974, esse crescimento começou a declinar e em 1981 o país entrou em crise profunda. Mas em 1977, quando Carmen e seu marido se estabeleceram no país, este declínio ainda não se fazia sentir no cotidiano da sociedade. Continuava-se importando mão-de-obra qualificada, já que as indústrias haviam recebido muitos estímulos, estavam crescendo e Victor era especialista em termoplástico.  A simpatia pelo Brasil ficou evidente na voz de Carmen, que ao recordar com um largo sorriso revelou:

Para nós foi muito bom, quando chegamos, era tudo barato, entende? No Brasil a gente via fartura, até hoje eu vejo fartura no Brasil, que é um país que eu digo que é minha segunda terra. Eu adoro o povo brasileiro. São Paulo me acolheu de braços abertos. Criamos os filhos primeiro em Santo André e depois em São Bernardo do Campo.

            Em Santo André eu conheci muitos amigos, eu tive muita dificuldade com o idioma.  Na feira eu não falava, porque como não entendia nada do que eles diziam, eu achava que eles também não me entendiam. Só que eu não sabia que eles achavam que eu era muda, até um dia quando eu ia caminhando com meus filhos, com o carrinho de feira e havia um buraco, dei um mau jeito, caí, e comecei a falar palavrão, porque enfiei o pé no buraco, não é? E aí a moça que me atendia, uma japonesa, começou a gritar!  Menino, menino, ela não é muda! E todo mundo começou a me abraçar.

Eles tinham pena de mim. Por conta disso, por algum tempo ganhei ovos e bananas – meus filhos não podiam mais ver banana, de tanto que ganhava. Foi a maneira que o pessoal da feira    encontrou para consolar uma jovem mãe de família, muda!

Em 1990 a família migrou para Joinville. Victor    havia recebido uma boa proposta de trabalho na área de plásticos.  A mudança faria bem à sua família, com certeza, pois em São Bernardo do Campo, onde moravam, já haviam sido vítimas da violência.     

               Minha filha foi pega por assaltantes como refém (…). Havia também outra menina, filha  de outro chileno, e um menino também (…) Graças a Deus chegou a polícia, quando eles sentiram a sirene eles soltaram a minha filha e os outros. Só que como os assaltantes eram menores de idade, a polícia soltou, e a gente começou a sentir ameaças, foi quando a gente viu que começou a ficar perigoso, eu vivia presa dentro de minha própria casa.

Em Joinville a família sentiu-se mais segura, instalou-se numa casa no alto de um morro, na rua Jaú de onde podia se avistar toda a cidade.

                 Naquela casa, com um grande terreno, eu criava oitenta galinhas. Era tanto ovo …. Quando eu cheguei em Joinville, o que eu mais gostei, é que me lembrou o Chile, o sul do Chile, Temuco, que é a terra do meu marido, onde morei. Ali muitas casas são em enxaimel como aqui.  Em tudo é muito parecido. O cachorro quente de lá tem chucrute.   Porque … depois da guerra chegaram muitos alemães. No sul do Chile tem muitos alemães parecidos com o joinvilense nato, mais fechado. Eles são mais fechados. Mas não são frios. Não falemos a palavra frio, acho que é o jeito de ser. Porque mais tarde   eu descobri que depois que você faz uma amizade, é uma amizade profunda, são carinhosos com você. 

Mas nem tudo foi fácil para Carmen e a família. Victor deixou o emprego anterior e tornou-se industrial, tudo ia bem, dois dos filhos trabalhavam na fábrica, Carmen também, era encarregada de muitas coisas, como marketing, vendas, contatos, etc.  Uma sucessão de fatos desfavoráveis começaram a acontecer após a entrada de um sócio e a empresa fechou, levando a família a uma situação de imensas dificuldades.      Para Carmen foi mais uma oportunidade de superação.

        A vida continua, eu me dediquei ao artesanato.  Depois que aconteceu tudo isso, eu que trabalhava nove horas por dia na empresa, corria muito, de repente parou tudo. Fiquei como uma aposentada.  Aí fica tu olhando para o céu e diz… meu Deus o que é que eu faço… Até que um dia eu vi uma apresentação de dança por um grupo de idosos do bairro Bom Retiro, no Festival de Dança, e eu adoro dançar. O grupo faz ginástica, dança, faz dança de rua para a   terceira idade.  Aí eu fui me apresentar e entrei para o grupo.  Eu ainda não estou na terceira idade, mas estou me preparando para ela, eu estou com 56 anos idade. Eu tinha que fazer alguma coisa, não podia ficar parada. Além do grupo de dança eu faço artes plásticas, artesanato, bordo vestido de festa, são coisas que aprendi sozinha, ninguém me ensinou. Então a finalidade era buscar uma recreação para mim e ganhar algum dinheiro.

Carmen estava se redimensionado diante da vida.

    Então, quando meu marido e meus filhos, que estavam muito deprimidos, me viram buscar alternativas, me mexer, a fazer artesanato, a bordar, inventar, aí eles começaram a notar que eles também podiam. Aí meu filho começou a trabalhar como representante comercial e já conseguiu comprar uma moto. Meu marido dedica-se à gastronomia, que ele sempre gostou e organiza eventos   em nossa casa, uma casa que havíamos construído no Bom Retiro, uma casa grande e boa, e ainda está conosco. Isso também ajuda no orçamento da família. Mas eu sou grata a Deus, a gente arranja forças. Eu já passei por tantas, quando lembro o que eu passei…. o bom disso tudo é que  ficamos mais  unidos e nossa qualidade de vida melhorou muito , a gente passou a dar mais valor às pequenas coisas.

 

E nesse processo de reconstrução de si mesma, Carmen encontrou o Projeto Matura(i)dade da Univille , foi assídua e entusiasta frequentadora , a ponto de nos conceder um longo relato da sua história de vida . Quando eu perguntei o que havia significado o curso do Matura (i)dade para ela , eis o que me respondeu:

 Ah!  Aprender, a gente fica adolescente de novo, a gente se sente útil, aprendi computação, porque eu estava tão feliz, aprendi a Internet, na página do menseger  , aí eu consegui falar com meu irmão , que fazia dez anos  que não falava com ele  , com minha irmã, no Chile, minha outra irmã do Panamá que faz trinta e dois anos que não vejo , é muito importante , a gente aprendeu coisas novas, fazendo amizades, o que foi  importante para mim, eu sou muito falante  .

 

 Considerações Finais

 

Cada pessoa carrega consigo sua história, suas circunstâncias que, no todo, vão constituindo o tecido social. A narrativa de história de vida, como diz Goodson, não se limita à reconstrução do passado (…) , mas à reorganização de experiências anteriores  e acumuladas que vão dando sentido  e identidade  . Nessas aspecto é de especial significado o que nos diz Verena Alberti em seu livro Ouvir Contar : “ aprendemos com a narrativa dos nossos entrevistados? Em que momentos, ou em que entrevistas, nosso ganho é maior do que o de simplesmente conhecer mais uma versão do passado?  Para esta autora aprendemos com os entrevistados quando a narrativa vai além do caso particular e nos fornece uma chave para a compreensão da realidade, nesse caso    realidade de migrantes e da realidade de Joinville, a “terra da “promissão”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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