A arte de viver (Joel)

A arte de viver
Joel Gehlen, em Crônicas de Maha Dharma, 30 de abril de 2020
Último dia de abril, o mês quatro, elemento terra, e essa lua, essa lua, essa lua em desavergonhado flerte no céu de Afrodite. A derradeira flor de Urano, nascida do sêmen castrado, flutua sobre espumas do mar. Adeus, à álgebra de abril, o mês de 40 dias, de 40 mortes vezes mil, da quarentena à quarta casa. Quatro vidas eu tivesse, todas passaria retirado em abril, à espera de maio, com as mães no domingo, o seu dia primeiro, e a esperança engalanada de estreia. Leva tempo demais aguardar os aniversários, os dias santos, as datas comemorativas. Dias e dias o trabalhador parado em melancólico descanso, inverte-se o desejo, abriria mão do feriado para ser feliz no cansaço. Então, se houver o incerto amanhã, qualquer um de nós poderá assoviar a música do silêncio maior.
Pela ordem natural dos calendários, as folhas de maio farfalham, prenhes de degredo, acantonadas no arvoredo onde canários-da-telha tramam a urdidura de seus ninhos. A tarde inteira, o amarelo-ouro e a companheira, fibra a fibra, arquitetam a ninhada da estação. Pintadas com o tom ocre do outono, as unhas de um pé-de-vento ameaçam a obra. Um bote de serpente, um gato atento, o olho do gavião, são incontáveis os agouros. Estão imunizados do mundo hostil, com banhos de luz e de pingos outonais, com sementas catadas ao chão; e também pelo voo, o tão sonhado voo que a dança humana imita e alça. No livro do seu tugúrio, cada haste seca é uma linha escrita, arrancada às gramíneas rasas das várzeas esquecidas para compor a frase de uma vida. O casal volteia gorjeante, no último azul de abril e pousa as pernas na procura teatral, como fazem os amantes que flutuam nas pinturas: o beijo de Klimat, os enamorados de Chagal, pairando sobre a noite, acima da vila, ao luar de maio.
Morrer já não é novidade e o trabalho deixou de alegar a longa ausência na única obra que há de nos significar. Amanhã, dentro de uma roupa de estreia, avancemos mascarados sobre a placidez de maio. Quando a morte exerce o seu mister, é então que a vida excede em transcender. Nada pode deter alguém com o seu propósito. Essa é a arte.

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