A coluna grega (Guerreiro)

A COLUNA GREGA

Walter Guerreiro   

O dia começou com névoa fraca e fria, a umidade como gotículas em suspensão no ar mal se entrevendo o recorte da serra, depois surgiu o Sol firme contra o azul do céu invernal, e uma brisa leve dispersou as nuvens aos flocos. Olhei para a cinza do cigarro e dei uma longa tragada, o rubro sinal do fogo contido e soltei aquela leve fumaça azulada subindo rumo ao infinito.

Junto à fumaça vieram as recordações no evolar do tempo.

Tempo, tempus fugit marcava o mostrador daquele relógio de pêndulo que me assombrava numa rica mansão que um dia tivera a sorte de conhecer, do som ritmado das engrenagens ocultas devorando as horas, tempo de infância, e me vieram à memória as brincadeiras com meus irmãos, correr pela terra enlameada da rua, adentrar o capinzal até os galpões ouvindo o pito da mãe: – Julius deixe os homens trabalharem!

Inevitável veio a figura carrancuda da professora na Deutsche Schule e as palavras mais de uma vez ouvidas:

– Julius, está sonhando? E o terror da figura vestida em preto, ameaçadora, com aquela régua de metro nas mãos. Devia a ela, contudo os primeiros ensinamentos, a geometria e a aritmética que tanto tinha me servido e, num certo momento aquela palavra que moldaria minha vida: Bildung e que ela enfatizava marcando as sílabas formara a civilização desde os gregos, a Paidea. Paidea ela explicava, de paidos que quer dizer criança em grego, sublinhando: se pronuncia pédos, não como essas brincadeiras que estou ouvindo! Para muitos colegas era penoso ouvi-la falar sobre aquela formação social tão distante, séculos e milênios atrás e nada tendo a ver com o dia-a-dia, para mim não, me deliciava saber sobre a Arete, a perfeita adaptação ao convívio de um povo, aquele conjunto de qualidades que levava ao cultivo de que tudo que é bom é belo.

E isso deixava meu pensamento vagar.

– Menino! Está outra vez sonhando! Do que eu estava explicando, me responda?

– Bem… professora era de aritmética, mas…

– Não tem mas nem meio mas, não estava prestando atenção, já para o canto.

E lá ia eu para o canto da sala de aula sob o riso dos colegas, encabulado olhar para a parede.  Os risos cessavam e eu olhava para as rachaduras do reboco com a cal soltando… e me transportava para a Odisséia quando Heródoto contava que os dóricos foram encontrados pela primeira vez em Creta naquelas morros de arenito branco.

Ah! Os dóricos entre os helenos os mais rígidos, tão plenos de Arete, vindo das terras altas, se deslocando pelas planícies alvas e selvagens, talvez daí aquela bravura que marcara Esparta, esguios, altos como lanças, eles eram os povos da lança. Não a toa a lança por excelência era a dory, símbolo do poder militar, pesada o suficiente para não ser arremessada e não tão longa quanto a sarissa, mais elegante, a ponta de bronze resistente à corrosão, a contraponta como esfera brônzea se apoiando no solo para resistir à cavalaria inimiga, livre para ser empunhada com uma mão enquanto a esquerda segurava o escudo. Só eles a poderiam terem desenhado. Façanhas dos heróis do passado quando na Macedônia a palavra do pai era a lei e a vida regulada por ritmos extremamente regulares. E…

Ouviu um silvo e viu os dóricos descendo ombro a ombro com os escudos formando muralha de bronze, as lanças erguidas recordando em suas hastes a madeira da floresta onde nasceram, com os olhos fixos nos inimigos até o clangor do impacto no choque, qual trovão reverberando pelos vales, os gritos de guerra arrebatando os espíritos.

Ânimo, ânimo, e ouviu de novo o silvo, virou a cabeça e viu os colegas correndo, terminara a aula. Levantou, descalçou as botinas e as amarrou com um laço, pôs aos ombros a mochila de lona que sua mãe fabricara e tomou o caminho de casa, algumas léguas distante, marcando o ritmo da corrida como os espartanos, depois saiu do chão batido e enveredou pelo capim gordura, as folhas agitadas pelo vento frio e pelos seus pés, veloz sentindo no corpo o calor dos tempos de outrora.

Veio a seu encontro a irmãzinha adolescente sorrindo, o vestido girando sobre o corpo, os braços erguidos imitando os passos de uma dança e ele a tomou suas mãos e a viu vestindo o chiton dórico sobre o peplos e giraram e giraram como ele bem sabia se dando as mãos e ele imitando o kalamatianô em caracol.

E naquele domingo após o culto no templo entre as doze colunas de canela preta pensava nas palavras da prédica sobre a carta de Paulo aos Filipenses: “Finalmente irmãos tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável tudo o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem nessas coisas”. Enfim vos digo preenchei a mente com tudo o que é bom e merecem elogios, isto é tudo o que é verdadeiro, puro, agradável e correto como a coluna invisível.

Subiu pelas trilhas no morro da Colônia pensando, naquele alto tal como no Olimpo dormem os heróis espartanos recostados nos troncos da floresta enquanto outros velam; vê o mar que se abre a seus pés, na linha do horizonte a ilha de Creta. Sentiu-se uma das sentinelas eternas dos batalhões sagrados de Zeus quando imerso nesses pensamentos seu olhar foi além da picada bordejando a mata densa, e lá distante estava o jequitibá rosa.

Deu mais uma tragada no cigarro e pensou sim talvez fora ele em sua majestade a inspiração em 1919, ou teria sido a leitura sobre aquele mestre-escultor grego que numa profusão de esboços traçara pela primeira vez uma coluna dórica?

Com nostalgia voltou à escola revendo aquela única grande gravura representando um menino ao lado de um escultor apoiado numa obra inacabada, a seus pés as lascas de mármore removidas. E o artista entrega o malho e o cinzel ao jovem discípulo. Na plaquinha de cobre afixada na moldura e esverdeada pelo tempo apenas um nome: Lísipo. Quando perguntara o porquê daquela gravura e a professora lhe dissera:

– Vá além do que está vendo, o mestre entrega as ferramentas ao discípulo, por quê? – – Julius respondeu: por que está cansado. Ao que ela respondeu: é muito mais do que isso, lembre do que eu ensinei sobre a educação naqueles tempos, o mestre passa seus conhecimentos ao discípulo, acompanha seus acertos e erros e dessa maneira constrói o homem como responsável por seus atos, o faz membro da polis, alcançando a excelência e o bem comum.

Julius amaria ser aquele menino. Seu pesar por não ter feito estudos regulares, entretanto as parcas condições familiares não permitiam daí sua obsessão quase doentia pelo que ouvira sobre a cultura grega, seu esforço em dominar o cálculo e, mais que tudo, encontrar papel para seus desenhos aproveitando tudo que lhe caia nas mãos, verso de envelopes, margens dos cadernos, papéis de embrulho esses sob constantes reclamações da mãe que lhe dizia do custo do papel e que deixasse de sonhar com “obras primas de enfeite”.

Poderia haver algo mais belo que uma coluna dórica, a mais rústica das ordens arquitetônicas com suas linhas verticais acentuando a ascensão do olhar, com elegância formal no despojamento, no equilíbrio e solidez refletindo o caráter de seu povo, o capitel não como adorno, porém como almofada sustentando o peso da arquitrave cumprindo apenas sua função. Inúmeras vezes traçara colunas em seus cadernos de desenho até aquele momento em que seu irmão Germano lhe dissera:

– Julius precisamos de uma nova fornalha e de chaminé maior, os tempos são outros, a produção aumentou e temos de crescer para isso. Que tal projetares, temos um mestre-pedreiro capaz de construir em toma lá dá cá.

Essa fora sua oportunidade de construir a coluna de seus sonhos, digna dos dóricos e assim a fez. Em papel milimetrado e a bico de pena. Não poderia traçar as linhas verticais no fuste, mas criou-a octogonal, cada quina formando uma linha em seus cinqüenta e seis metros, tão alta quanto os recursos permitiam, milhares de tijolos pacientemente cimentados, Tinha de colocar um capitel de qualquer jeito e colocou a kopfschmiege tal como cone invertido parecido com um cálice de licor, dotado de sulcos e canelado para diminuir o peso naquela altura, seria um capitel fiel aos dóricos relembrando as origens.

Sustentaria o que? Sustentaria o céu, sustentaria seu sonho.

Sua coluna permaneceria através dos tempos, diriam é uma chaminé fora do comum, não para os dóricos.

Apagou o cigarro e sorriu, tudo que é bom é belo.

Obs. Inscrito no Concurso nacional de contos Anna Maria Martins da União Brasileira de Escritores.

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