A estagiaria
Doutor Pantaleão era terrível. Não tinha pior. Aliás, empatava com Doutor Astolfo quando juntos. Rápido no pensamento, não perdia chance de derrubar adversário, era mestre na galhofa, com “expertise” em chacota.
Juiz de Direito, letras grafadas em maiúsculo, exigidas e alardeadas aos quatros ventos, iniciara como juiz de paz, mas como a lei mudou, tinha contatos e conseguira “passar” no concurso, agora que concurso era obrigatório. Não sabia tudo, é bem verdade, mas ia de quinzena na capital, para se “inteirar”. Homem letrado, não deixava por menos, e não perdia oportunidade de rasteirar desafeto.
Soavam de bons olhos suas façanhas, na cidadezinha que encolhia a olhos vistos, pois o café perdera a força e a juventude buscava fazer a vida na cidade grande. No mormaço do fim de tarde, jogava caixeta entre copitos de cachaça, reunindo-se na pracinha da retreta com a nata da sociedade local: o padre, o delegado e o grande amigo, Dr. Astolfo, rábula que conquistara o título de advogado por ter sido nomeado interventor quando da lei velha. Diziam que nem bacharel era.
Nas risadas entre tragadas de charuto, Pantaleão e Astolfo tentavam arrancar do padre segredos do confessionário, tanto os da moral do rebanho, saber quem andava com quem, quanto os de ordem financeira, esses os que mais interessavam, quem devia para quem. Mas o padre, espantando o fumarento ar com rabugice, mantinha-se irredutível, guardando com sete chaves os segredos das alcovas, tanto os que ocorriam sobre os colchões, como os que se escondiam debaixo desses, até porque era dos últimos que provinha o caixa da paróquia.
Já o delegado nada falava, apenas arregalava os olhos para tudo e todos. “Olha que prendo”, só o que sabia dizer, empertigando a autoridade concedida a cabresto, pois estudara só até o primário forte, mas como fora secretário do sindicato cafeeiro, quando o café ditava normas e na falta de maiores credenciados, conseguiu amealhar o cargo. Hoje, à falta de trabalho na cadeia, limitava-se a trancafiar o Nego Emílio, quando esse passava da conta nos tragos e saía gritando pelas ruas, chamando homens de “corno” e mulheres de “quenga”. Viviam assim, das reminiscências, relembravam as bandalheiras, rindo aos borbotões, sob o olhar compungido do padre, que não tinha coragem de exortação. Nas galhofas, relembravam sempre a safadeza feita ao Nego Emílio. Era fato:
Estavam na pracinha quando Doutor Pantaleão chamou o mulato que rondava: “Emilio, vem cá”, “Pois não, seu dotô”, respondeu respeitoso, olhando de soslaio, mostrando acanhado os grandes dentes, no contraste da pele escura. “Qué uma batida de coco?” Ele apenas meneou a cabeça de forma assertiva, e já o Doutor Astolfo enchia o miúdo copo com a tal batida branca e viscosa, que nada mais era do que uma barra de sabão de coco diluída e misturada com cachaça. Emilio estendeu a mão e tomou de um trago só. “Tá bão?” Ele assentiu positivamente. “Qué mais?” Novo meneio de cabeça e novo trago. Não deu outra, Emílio tomou, de trago a trago, a garrafa toda, e logo o resultado apareceu. Um borrão nas calças denunciou a diarreia e Emilio foi embora deixando, entre as risadas do povo, um rastro no chão e no ar.
Também lembravam, entre gargalhadas, de Dona Quitéria, chamada para depor num caso de estupro. Doutor Pantaleão, circunspecto, lhe perguntou: “A senhora foi arrolada por quem?” Ela, apontando meio receosa para a vítima, falando em voz sumida: “Não foi em mim não, seu dotô, a rolada foi nela alí, ó…”.
E aquele advogado novinho que veio empoado da capital? A audiência teve que ser suspensa por causa do alvoroço. Era um caso de terras e ele perguntou para Sebastião, réu safado: “O senhor reconhece quem aparece nessa foto?”. Bastião olhou de esguelha: “Sou eu mesmo, dotô!”. E o advogado querendo fazer bonito: “O senhor estava presente quando a foto foi tirada?”. Bastião não perdoou: “Não seu dotô, era só o meu esprito…”.
E assim passavam as tardes pacatas, à espera do que fazer, no tempo onde o tempo não passava. Mas eis que num belo dia surgiu um fato novo para tumultuar a placidez. A pequena cidade de Conceição das Cachoeiras recebeu uma estagiária de direito, Clotilde, dessas de muitas curvas e pouco saber. Veio pedir vaga ao Doutor Pantaleão, recomendada por amigos da capital. Aboletou-se na pensão de dona Maroca e na antessala do juiz, denominação pomposa dada ao apertado corredor de acesso. “Vim pra aprender”, dizia, mas o juiz logo percebeu que seus dotes eram mais físicos do que intelectuais, passando a investir com certa frequência na frequência que fazia ao corredor. Já falavam que afundava caminho no fórum, rareando suas idas à pracinha, deixando os amigos sem parceiro de jogatina.
Mas a moçoila resistia às investidas, “deixa disso, doutorrr”, carregando no erre, o juiz ficava cada vez mais afoito enquanto fazia vistas grossas aos erros crassos nos despachos. Até que, como não podia deixar de ser, chegou o dia em que Doutor Pantaleão não se aguentou e agarrou Clotilde. Atracou-se nela ali no corredor mesmo, tateando as mãos em busca das generosas carnes, a moça tentando se desvencilhar, falando baixinho para não atrair atenção, “me largue, me largue”. Doutor Pantaleão, achando que ela sussurrava, avançava na ousadia, quando assomou à porta Geraldina, mulher pudica devota da procissão de Nossa Senhora das quintas-feiras. “Que qué isso… que falta de respeito… onde já se viu… esse mundo tá perdido…” falava pelos cotovelos, enquanto Doutor Pantaleão refugiou-se em sua sala e a estagiária esfarrapava desculpas, “não é o que a senhora tá pensando…”.
Sem álibi, fugiu do fórum, refugiou-se na pensão e de lá não arredou pé. Doutor Pantaleão aguardou na semana, e depois voltou a frequentar a pracinha, mas ria com tristeza, enquanto a cidadezinha ria desbragadamente, pois tinham novo assunto nas rodas de cachaça, principalmente quando Nego Emílio disparava: “É quenga”. Passada quinzena, Doutor Astolfo, compadecido da sina do amigo, resolveu ir à pensão resolver o retorno de Clotilde. Achou-a deveras voluptuosa, mas irredutível: “Lá volto não”. Pensando em integrá-la aos poucos no convívio forense, “uma audiência aqui, uma petição acolá”, convidou-a para estagiar em seu escritório, um convite prontamente aceito. Dizem as más línguas que já prenunciava plano arquitetado, embora ele jure pelo não, o certo é que a moçoila enfeitiçou Doutor Astolfo e em poucas semanas sentava-se ao seu colo para peticionar. Enquanto os demais o aguardavam impacientes na pracinha, ele atendia os pleitos, glúteos e demais plúrimos que galardoavam os atributos de Clotilde.
Não sem motivo a amizade de longa data com Pantaleão estilhaçou-se, os erros de português começaram a pipocar nas petições até então impecáveis, ele já não tinha olhos para a ortografia, obcecado pelos generosos dotes da moçoila. No fórum multiplicavam-se pedidos para “assustar” cheque, mandado de citação do “senhor Espólio” e um sem fim de esdrúxulos forenses, nem sempre passíveis de serem mitigados pelo apaixonado e rejuvenescido rábula.
A acidez do juiz, cumulada com a rejeição não deglutida, começou a permear os despachos do furibundo julgador, aproveitando-se de todo e qualquer deslize para fustigar o novel rival. Não por menos, certo dia apareceu no fórum uma petição de inventário oriunda do escritório agora inimigo:
“Joaquim dos Passos, ora ´de cujus´, veio a falecer nesta comarca, contando a idade de 72 anos, deixando esposa e 2 filhos …”. A petição contava os pormenores da morte, relacionava os bens a serem inventariados, mas tinha um pecado mortal, não trazia elencado o pedido, como determina o código. Encerrava com o solene “Nesses termos pede deferimento” e nada mais. Ao Doutor Astolfo, embevecido pela languidez da cachopa, passara despercebido esse crucial detalhe.
“Não é o caso de determinar a emenda da inicial, Doutor?”, perguntou o sempre serviçal escrivão. O categórico “não” dito pelo juiz enfatizou a sede de desforra que o acometia. Nem precisou maquinar muito, o despacho foi fulminante:
“… Em vista de tão pungentes fatos, conforme narrados na exordial, mas carecedor de pleito, é de se arquivar o feito. Pelo exposto, condeno o nobre causídico à compra de uma coroa de flores a ser depositada aos pés do túmulo. Registre-se. Autue-se. Publique-se. E lamente-se com pesar a morte do ´de cujus´.”
Mar/2017