A festa de Natal de Senhorinha (David)

A FESTA DE NATAL DE SENHORINHA

 

Senhorinha ia completar 90 anos. Muito falada e pouco conhecida. Vivia como sombra errante. Morava distante de Quadrínculo, na fazenda herdada de seus pais, e, há anos, ninguém a via pela cidade.

No imenso casarão, ela e o empregado Doriva, também envelhecido, que fazia as compras, de vez em quando ia aos bancos, dirigindo uma caminhonete Willian corroída por ferrugem. Os mais antigos se lembravam do fazendeiro Leonardo, homem temido, cheio de bravatas, que não tinha papas na língua, incapaz de levar desaforos para casa, e de dona Doracy, mulher religiosa, de não faltar missa aos domingos. Haviam entrado na selva, no vale do Ivaí, terra-roxa de invejar, no começo da colonização. Usaram da força bruta para dominar o sertão. Mas fizeram fortuna. Amealharam terras, não se sabe como, mas se tornaram poderosos. Os habitantes mais velhos contam fatos e boatos sobre as bravatas de Leonardo e pouco se fala sobre dona Doracy. Dela, dizem que era uma mulher desprovida de vaidade, dedicada ao trabalho da casa.

Naquela época, os casais procriavam balaios de filhos. Vangloriavam-se por ter quinze, vinte ou mais filhos, e a boa mulher era considerada uma fábrica de bebês. Mas, no caso de Leonardo e Doracy, só tiveram uma filha, e isto marcou Doracy como uma figueira seca, para desespero de seu marido. Havia, então, grande descontentamento no casal. Estavam ricos, mas o fato de deixar a herança para a filha os deixava aborrecidos.

Senhorinha cresceu na fazenda. Sem amigas, sem ir à escola. O pai a ensinou a ler à luz de lamparinas. Acompanhava a mãe à missa aos domingos. Era só. Quando os pretendentes apareceram, foram afastados pelo pai. Não seria qualquer joão-ninguém a  genro. Senhorinha não era feia. Mas não se cuidava. Homens gostavam de mulheres cheirosas, princesas, e os pretendentes estavam mais interessados na fortuna.

O impensável, mas provável, aconteceu. Numa tarde quente de verão, no meio do cafezal, dando ordens à peonada, Leonardo sentiu-se zonzo, agarrou-se nos ramos do pé de café, e tombou feito jaca madura. Estava morto. Completara sessenta anos e imaginava-se que duraria mais sessenta, tanto era sua força bruta.

Senhorinha e a mãe tiveram que tomar conta dos negócios. O finado Leonardo centralizava tudo, como Moisés manejando o cajado. Mãe e filha tiveram que aprender a duras penas. Foram enganadas por vizinhos, bancos e empregados. Mas conseguiram tomar rédeas. Assim viveram por oito anos.

Era comum vê-las na cidade, junto com o peão Doriva, quem dirigia a caminhonete cinza. Por onde passavam, havia cochichos e, também, admiração. Então, elas tocavam a fazenda como homens!

– Onde se viu? – diziam os homens, ofendidos. – Lugar de mulher é no fogão. Quando muito, nas missas.

Mas elas não davam tréguas. Mantinham-se na trilha, e até se podia dizer que os negócios iam bem.

Viúvos e solteirões rondavam o terreiro, como galo velho. Podiam, sem dúvida, ter uma parte daquele filão de ouro. Mãe e filha ignoravam tais propostas e seguiam firmes nos afazeres. Doriva, o fiel escudeiro, seguia-as e obedecia-as sem ressentimentos. Comentários corriam:

– Só pode ser amante das duas. Eta, cabra de sorte. Vai herdar tudo. Se faz de bobo, mas é uma raposa.

Por esse tempo, veio o golpe duro: a mãe, quando comandava a secagem do café no imenso terreirão, sofreu um mal súbito, e caiu sobre os frutos ainda em cereja, sem tempo de pedir ajuda.

Assim, Senhorinha passou a viver só.

Ocupava-se com a lida dos cafezais, que ondulavam os morros, e da administração, contando moedas, já que as dívidas com as frustrações das colheitas aumentavam. Isso pela década de setenta.

O golpe fatal sobreveio com a geada negra, em 1975. O mundo desmoronou. Os cafezais das terras-roxas simplesmente foram torrados. O que era verde ficou cinza-chumbo. Os proprietários, grandes e pequenos, se viram, da noite para o dia, falidos. Aconteceu, então, o grande êxodo: colonos semianalfabetos abandonando as fazendas e sítios ou sendo expulsos, e indo para as médias e grandes cidades.

Senhorinha não sabia o que fazer. Estava falida. Olhava os colonos esfomeados pedindo para ficar, implorando, e nada podia fazer. Com que dinheiro tocaria os negócios? Os bancos eram vorazes.

– Então, Senhorinha, vamos liquidar as pendências – o gerente do banco, antes tão atencioso, agora carrancudo, inquiria-a.

Assustada, rodopiando no grande varandão, ela tentava argumentar, inventar uma saída, ganhar tempo.

– Ah, seu Garcia, má hora pra negociar… Levamos uma marretada na cabeça. Esta geada foi o diabo. Não restou nada. Dá uma espiada: os cafezais estão secos, nem brotarão mais…

– O banco não vive de promessas. Quer o dinheiro de volta. Não é responsável pelos riscos da lavoura.

– Paciência, seu Garcia, a gente não está negando. Sou de honrar os compromissos. Aceita uma xícara de café?

Nem aceitou.

– O que digo aos meus chefes? Quanto pode pagar? Pelo menos, a metade. O restante consigo pra mais um ano. Com juros, é claro.

O que dizer? Estava com a bolsa vazia.

– No momento, confesso, estou sem condições. Temos que rolar a dívida. Esta geada negra…

– O banco vai executar os títulos, Senhorinha. Por mim, não. Mas os chefões não perdoam.

Oh, tempos difíceis! Se, pelo menos, os pais fossem vivos. Aquele gerente não falaria tanta bobagem.

Chamou o empregado Doriva:

– Estou quebrada. Mande os colonos embora. Não há como custear as despesas. Se você quiser ir, também pode ir. O mundo desmoronou.

Doriva não disse nada. Dois dias depois, ele disse:

– Eu fico, dona Senhorinha. Não sou de abandonar o prato onde comi.

Assim, somente os dois ficaram na fazenda arruinada.

.  .  .

Foi exatamente no início de dezembro, às vésperas de seus noventa anos, quando se achava sentada no varandão decadente, e olhava o casario envelhecido e podre dos colonos, os currais desmantelados, que Senhorinha, naquela manhã prenunciando calor, teve a ideia de organizar a festa de Natal. Começou a lembrar-se de velhos vizinhos, amigos, parentes, e também das comemorações de Natal quando sua mãe vivia, e um rastro de saudades dopou-lhe a mente. Fazia calor logo de manhã e seu aspecto era desleixado, cabelos grisalhos mal-cuidados enrodilhados e torcidos num coque, enquanto mechas caíam-lhe de cada lado das faces enrugadas. Seus olhinhos vagos e azuis apagados brilharam alucinados. Sim, uma festa. Não sabia ao certo quantos anos faria. Tentava contar, mas se perdia. Mas não se prendeu aos anos. Entampou, assim de repente, um sorriso vivaz e começou a falar sozinha. Caminhou de um lado a outro do varandão com o auxílio de uma bengala de grevira. Teria muitas coisas para fazer. Mas, Deus, por onde começar?

– Doriva! Doriva! – se pôs a chamar o peão, já um tanto envelhecido, curtido por reumatismos crônicos.

O peão apareceu no meio do terreiro.

– O que se passa, patroa? Precisa de alguma coisa?

– Por que demorou tanto? O que estava fazendo?

– Estava na horta, aguando as plantas.

– Não tente me enganar. Você continua cada vez mais preguiçoso. Temos muitas coisas para fazer.

– Sim, patroa…

– Vamos dar uma festa no Natal. É preciso ir às compras.

O peão demorou para entender.

– Uma festa?

– Sim, uma festa. Resolvi agora. Vamos agir. Não fique como bobo no meio do terreiro.

Mas o peão não se mexia. Era mais uma história de Senhorinha… Logo ela esqueceria e tudo voltaria ao que era antes. Por isso, não se assustou, nem tomou providências. Paciência, Senhor, paciência.

Pelo meio-dia, ela voltou a falar da festa.

– Estou elaborando a lista de compras.

Doriva abanou a cabeça. Estava levando a ideia a sério. Onde arranjaria dinheiro? Viviam à míngua.

– Quando estiver pronta, você vai pegar a caminhonete e irá à cidade. Talvez, no sábado. Não, não, é melhor na segunda-feira. Sábado não é bom dia pra pechinchar e pode ser facilmente enganado pelo dono do armazém.

Mostrou-lhe uma folha amarelada onde estava anotando os itens, numa caligrafia trêmula.

– A patroa quer ajuda?

– Eu faço a lista. Você vai comprar.

Antes das compras, que seriam na segunda-feira, ela teve alguns sonhos indigestos. Estava numa cama de nogueira, gravemente enferma, tossindo, as bochechas vermelhas. Recebia a visita da Morte, uma mulher magra, puro ossos, que segurava uma foice afiada. Você está no bico do urubu, dizia-lhe. Não esqueci de você, não. Fica escondida neste fim de mundo, mas eu não esqueço de nada. Senhorinha, apavorada, esconjurava, gritando palavrões que lhe custavam a sair da boca seca e murcha. Sai, capeta! Sai, Satanás! Sai, Belzebu! A morte ria, ria, ria. Mas, antes, dizia-lhe, vou deixar você realizar a festa. Um pouco de alegria faz bem. Não gosto de levar almas amarguradas para o caldeirão. A casa, então, era surpreendida por um vendaval e tremia, sacudindo caibros, ripas, tábuas, e as gargalhadas da mulher segurando a foice explodiam como fogos de artifícios. Sua cama era arremessada pelo vento forte e, sem perceber, era depositada em cima do morro, no meio da pastaria. Acordava suada, sem fôlego, como se alguém tivesse pisado em sua garganta.

Esses sonhos tenebrosos se repetiram e Senhorinha teve, a cada momento, mais pressa em realizar a festa.

Era estranha, porém, a ideia da festa. Como as pessoas receberiam a notícia? Mesmo quando moça não participara de muitas festas. Nos últimos anos, ela não havia sido convidada para nenhuma. Ficara esquecida. Mas ela adorava festa, embora tivesse sido proibida pelo pai quando moça. Gostava de cear, gostava de ouvir música, de saber sobre as novidades da moda, de beber e apreciar comidas diferentes, ouvir fofocas, saber quem iria casar-se… Aborrecia-se muito quando não a convidavam, chorando às escondidas.

Revirou o baú e retirou de uma pasta de couro enrijecido  um pacote de dinheiro que havia escondido por ocasião das dificuldades que havia tido com os bancos. Eram notas velhas, emboloradas, mas válidas. Guardara-as temendo privações no futuro, mas não precisara usá-las, de modo que poderia gastar tudo na festa de Natal, sem receios. Se não usasse, corria o risco de algum ladrão entrar no casarão e levar as pequenas economias.

– Gozar a vida em vida – repetiu.

Contratou alguns empregados como diaristas para limpar, espanar, polir, aparar o gramado. Havia cantos e armários que há anos não eram limpos. Alguns objetos ao toque de panos e vassourinhas se esfarinhavam. As tábuas estavam infestadas de carunchos; por detrás dos móveis, grossas camadas de pó pareciam compactadas, sólidas. Mas em três dias, com a supervisão infatigável de Senhorinha, que caminhava da sala de visitas à cozinha, à estrebaria, às tulhas apodrecidas de café, o casarão ganhou cheiro de limpeza e parecia, apesar de velho, brilhar ao bater do sol. Esvaziou arcas, armários, baús, prateleiras, reorganizando objetos, verdadeiras quinquilharias, que não tinham mais valor. Descobriu, no porão, garrafas de cachaça envelhecida, garrafas de vinho, ainda quando o pai era vivo. Alegrou-se com a descoberta. Poderia servir aos convidados. Ao abrir uma garrafa de vinho, descobriu que estava azedo. Ficou cismando: por que não bebera antes? Bem, vamos adiante, consolou-se, novamente se pondo em ação.

.  .  .

– Agora, a lista de convidados.

Doriva procurava ajudá-la. Quem ela convidaria? – perguntava-se. Há anos Senhorinha não saía de casa e muito menos recebia visitas.

De posse do livro de endereços, páginas amareladas, rasgadas e algumas corroídas por traças, Senhorinha se pôs a organizar cuidadosamente a lista. Essa gente não, essa gente sim. Esses senhores, essas senhoras. Selecionava por breves e deliciosas lembranças, de encontros e desencontros, fatos e boatos, ascensão social. Não convidaria os malditos, os pés-rapados, os pés-inchados. Divertia-se enquanto, com letra bem desenhada, como se estivesse num exercício escolar de caligrafia, ela selecionava os convidados. Ah, como seria bom rever aquela gente!  Quando terminou, era madrugada, a barra da manhã clareando. Estava exausta quando endereçou os envelopes, e dormiu na poltrona mesmo, tão cansada. No mesmo dia, pretendia que o peão Doriva fosse à cidade e postasse a correspondência. Sequer passara pela cabeça que muitos nomes transcritos estavam mortos ou simplesmente já não residiam por aqueles endereços. Depois do êxodo rural, muitas casas eram ruínas, cercadas por matagal. Os campos ficaram vazios, mas ela não percebera, de forma que toda aquela gente ainda vivia como antes.

Há anos o hábito de escrever cartas caíra em desuso; as agências postais viviam de encomendas. A internet fora um duro golpe nos serviços postais e as pessoas se comunicavam on-line. Os carteiros eram figuras do passado. Jovens estavam conectados com o mundo e a aldeia global ficava cada vez menor. Mas Senhorinha não se interessava por esse novo mundo.

Nos dias seguintes, ela e o peão Doriva cuidaram dos provimentos. Foi um ir-e-vir à cidade sem tréguas, com longas listas de compras. Os habitantes estavam surpreendidos com as diligências da velha senhora, tão magra mas disposta, olhinhos faiscantes, escolhendo iguarias, discutindo preços, testando a qualidade dos ingredientes.

– Pelo jeito, haverá uma festa! – comentou o dono do armazém, tentando reatar uma conversa agradável.

Senhorinha não disse nada.

– Quero falar com seu Haroldo.

– Ele não está, senhora.

– Chame-o urgente. Diga que sou eu, Senhorinha, filha do fazendeiro Leonardo e dona Doracy.

O peão Doriva puxou-a pelo braço, respeitosamente, para dizer-lhe algo, mas não houve tempo.

– Sinto muito, senhora – o vendeiro foi dizendo, enquanto a olhava estranhamente. – Não há como chamá-lo. Está morto há anos. Comprei o armazém dos filhos dele, que não queriam tocar o negócio.

Senhorinha estava perplexa.

– Morto? Por que ninguém me avisou?

– Bem, não sei o que dizer… Sou o dono hoje. Vamos continuar o pedido? O que a senhora deseja?

Doriva teve que continuar a compra. Senhorinha sentia os membros entorpecidos e a cabeça rodando. Que mundo era aquele? As pessoas morriam e nem se davam ao trabalho de anunciar o velório.

Assim aconteceu no açougue, na quitanda, na costureira. Todos tinham partido sem aviso. Ela teve que concluir as compras com pessoas estranhas.

Mas a notícia de que ela daria uma festa no Natal correu entre os habitantes. Quem a conhecia, queixava-se de não ter recebido nenhum convite. Pelo visto, segundo os boatos, seria uma festa de arromba. Então, diziam, a velha mão-de-vaca resolvera abrir a mão.

– Espero que não me esqueça de convidar. Nunca pus os pés naquela casa. Que tesouro ela esconde dentro daquelas paredes?

Quem não a conhecia, esperava o convite para conhecê-la. Assim, ela se transformou na notícia quente.

.  .  .

Três dias antes do Natal, Senhorinha concentrou-se na sua aparência. Que vestido usaria? Que joias? Abriu o guarda-roupa e lá encontrou vestidos feitos há sessenta anos, embolorados e muitos roídos por traças. Inspecionou um por um. Nada agradou. Mas não tinha tempo para ir atrás de costureiras. Optou por um vestido escarlate, com ramos de rosas. Escovou sapatos de cetim cinza. Joias? De uma gaveta emperrada, retirou anéis, correntes e medalhões dourados, broches de pérolas, brincos e colares prateados. Muitos eram autênticos e outros eram falsos, comprados de um conhecido mascate que circulou pela gleba e depois, inesperadamente, nunca mais apareceu.

Surgiu-lhe uma ideia. Tinha que ter Papai Noel na festa, como era costume. Uma festa de Natal sem o velho bondoso distribuindo doces não era festa. Mas, quem? Ora, quem? O velho peão Doriva. Por que não havia pensado nele antes? Chamou-o no meio da noite. Insone, o peão não entendia o que ela dizia.

– Você será o Papai Noel. Não adianta recusar.

– Ahan… ahannn… O que está dizendo?

– Acho que tenho a roupa que meu pai, certa vez, usou – pulou da cadeira, elétrica e começou a vistoriar baús e guarda-roupas, até que voltou, sorridente, triunfante, balançando a roupa vermelha diante do nariz do peão. – Eu não disse! Aqui está. Amanhã, lavarei.

Doriva não teve tempo de negar. Estava assustado.

Senhorinha contratara três cozinheiras. Elas trabalhavam intensamente, fiscalizadas por ela, não permitindo conversas impróprias ou desperdícios. Isto as deixava irritadas, mas precisavam do dinheiro e assim mastigavam impropérios, desaforos.

– Deixe estar, velha bruxa! A gente se encontra depois da festa e há de ver com quantos paus se faz uma canoa!

.  .  .

O casal olhava a tarde morna e os transeuntes apressados sobraçando pacotes de presentes, enquanto um Papai Noel desfilava em cima de uma caminhonete, distribuindo sorrisos e balas.

– Estou pronto pra te dar até a lua de bandeja – comentou a mulher que devia ter um pouco mais de trinta anos e usava minissaia, com boas coxas à mostra, e vestia uma blusa de malha que deixava os seios salientes atiçando o apetite dos homens.

– Oh, querida – disse o homem de pescoço e braços fortes tatuados com cobras e dragões cuspindo fogo. – Estou tão carente. Contava os dias para sair daquele inferno. Sonhava com o indulto de Natal…

Ambos ficaram olhando-se fixamente. Tinham saído do presídio estadual no dia anterior e ainda estavam se acostumando com a liberdade temporária. Quinze dias livres! Queriam sugar até o caldo.

– O que vai comer? – perguntou a mulher, ajeitando-se na cadeira de plástico do bar.

– Dois pães e um ovo, ou dois. E você?

– Sei lá. Talvez, pão com linguiça. Quero beber. Estou zonza com esta claridade.

O dono do bar trouxe um pão grande com dois ovos mexidos e uma cerveja. Enquanto ele comia, ela ficou falando de sua filha mais velha, que se engravidara, nem sabia com quem.

– O fruto não cai longe da árvore – disse o homem, cuspindo pedacinhos de pão e ovo sobre a mesa.

– Ah, o roto falando do vagabundo. O que você vai fazer com tua mulher, que dá o rabo pra todo mundo?

Ambos se calaram. Não deviam gastar o tempo livre com bobagens. Bebiam a cerveja, olhavam a rua, e a cidade parecia envelhecida, embora as ruas estivessem enfeitadas para o Natal.

– Temos que fazer alguma coisa. Essa mesmice me mata – confessou o homem como se rompesse o cérebro.

Foi, então, que ouviram falar da estranha velhota que daria uma festa de Natal.

– Vai ser uma festa de arromba – dizia o botequeiro aos fregueses. – Aquela mulher tem muito dinheiro escondido, joias, relíquias. Quase não aparece na cidade. Por esses dias, está gastando pra valer.

O casal se entreolhou.

– Está pensando o que estou? – disse a mulher, inquieta.

– Pode ser a mina de ouro.

Beberam pensativamente a cerveja.

– Uma oportunidade. A gente rouba a velhota e todos os convidados.

– Antes, querida, temos que conseguir uma caminhonete.

– Isto é canja. Tem aos montes por aí.

Passaram a tarde bebendo, entusiasmados. A cidade parecia-lhes promissora.

.  .  .

Na véspera de Natal, Senhorinha acordou cedinho. Mas demorou a sair da cama. Ficou se remexendo, pensativa, lembrando-se de todos os detalhes da festa. Sentia-se, porém, febril e nervosa.

A festa seria no velho depósito de cereais e mesas e cadeiras já haviam sido colocadas no lugar. A entrada estava iluminada com estrelas de Davi, pinheiros verdes colhidos na fazenda. Sobre as mesas, a prataria e candelabros. As cozinheiras serviriam os convidados, evitando despesas desnecessárias.

O peão Doriva sentara-se no portão do velho armazém, vestido de bom velhinho, incomodado, suando. Maldizia, entredentes: maldita patroa! Não tinha jeito para encenar o papel. Mas, como bom escudeiro, ali estava.

Senhorinha, no vestido escarlate com ramos de rosas, sentara-se no centro da mesa central e esperava pelos convidados. Com brincos, anéis e braceletes, correntes, parecia uma rainha do tempo de Dom João. Tingira os lábios de batom púrpura, empoara o rosto de pó-de-arroz; mesmo assim, as rugas saltadas feito pés de galinha sobressaltavam-se. Perguntara, angustiada, ao peão:

– Estou bonita?

– Sim, patroa.

Havia marcado o início da festa para as oito horas. Esperava, ansiosa, pelos primeiros. De onde estava, vigiava a entrada da fazenda, para ver os faróis dos automóveis e caminhonetes. Mas nada disso acontecia. Só o breu da noite, as estrelas na imensidão.

Uma coruja piou distante, perto do córrego. Um canto triste, quase desolador, cortante.

– Que horas são, Doriva?

– Ah, patroa, deve passar das oito – respondeu, incomodado, enfiado naquela vestimenta vermelha, feita para o Polo Norte, e não para os Trópicos.

– Povinho sem disciplina – queixou-se, sentando-se no topo da escada. – Nunca chega no horário.

Bateram dez horas. Ninguém aparecia. Estava com fome. Mas seria indelicado comer antes dos convidados. Contentou-se em beber um copo de água.

Bateu meia-noite. Senhorinha, impaciente, um pouco trêmula, levantou-se do topo da escada, deu voltas ao redor da grande mesa. Que se danasse aquela gente injusta e mal-agradecida.

– Eu vou comer, estou meio tonta.

Ordenou que as cozinheiras a servissem.

– Coloque o disco na vitrola, Doriva. Quero ouvir canções de Natal. Pelo menos, não morrerei de tédio.

Doriva foi à vitrola e colocou o disco de vinil. Canções doces natalinas flutuaram pelo barracão.

– Sente-se, Doriva – ordenou

O peão sentou-se. Estava faminto. Não havia comido nada o dia inteiro. Serviram-se de vinho e comeram os guisados.

– Não entendo, Doriva, algo aconteceu. Será que essa gente se esqueceu da festa? Que ingratidão!

Parecia deliciar-se com a comida.

– Azar dessa gente. Fiz a minha parte. Não sabe o que está perdendo. Este pato recheado está uma delícia. Quem preparou, Doriva?

– Ah, patroa, foram as cozinheiras.

– Que cozinheiras?

– As que a patroa contratou. Não se lembra?

Senhorinha olhava vagamente, sem entender.

– Sempre acontece esta festa, Doriva? Todo ano?

– Ah, patroa, faz tempo que não acontecia… Está muito animada, não está? Precisamos repetir todo ano, não acha?

– Me diga, Doriva, nos outros anos havia mais gente do que hoje?

O peão, enfiado na roupa de Papai Noel, não sabia o que dizer.

– Cadê o meu presente? Não vá dizer que esqueceu do meu presente. Espero que seja algo útil.

Ele foi, constrangido, ao final da mesa e, silenciosamente, embrulhou um garfo e uma colher num papel grosseiro, e entregou-os.

– Aqui está o presente, patroa. Espero que goste.

Senhorinha desembrulhou e uma alegria inundou-lhe o espírito. Os olhinhos cintilavam como as estrelas míudinhas no céu. Erguera-se para fazer um brinde, quando se ouviu o ronco de motor cruzando a entrada da fazenda e logo a seguir parando no pátio.

– Estão chegando os convidados! Se comporte, Doriva. Não podemos fazer feio. Estão atrasados.

Apoiada na bengala, se pôs de pé. Respirava com esforço. Quem seria? Por que havia demorado tanto?

Um homem desconhecido, acompanhado de uma mulher, estavam diante dela, e não eram nada amistosos.

– Entrem, sentem, sejam bem-vindos! – foi dizendo, esforçando-se para reconhecê-los.

Surpresos, os desconhecidos sentaram-se.

– Doriva, peça para servir o jantar – ordenou, assumindo o posto de patroa.

Servida a ceia, regada a vinho, os desconhecidos limparam a boca com os dorsos das mãos, grosseiramente.

– Boa patroa, nossos agradecimentos pela ceia, mas viemos até aqui para buscar as joias e o dinheiro guardado no baú – disse o homem, olhando-a ferozmente, apontando o revólver. – Vitória, vá até o carro e traga as cordas. Fiquem quietos. Isto não é uma brincadeira. Se cooperarem, sairão ilesos.

Senhorinha e Doriva foram amarrados e as cozinheiras trancadas na cozinha.

– Agora, vamos ao que interessa: as joias! O baú!

Arrancaram-lhe os brincos, a corrente, os braceletes, os anéis. Depois, reviraram a casa. Estavam exaustos, decepcionados. Nada de valor haviam encontrado. Tudo não passava de quinquilharias.

Voltaram ao barracão e beberam três garrafas antigas de vinho. Bebiam sem apreciar, como se sorvessem cachaça.

– Minha senhora, nunca tivemos um Natal tão farturoso como este. Estamos tristes por não ter achado o baú cheio de moedas de ouro, mas felizes por cear fartamente. De onde viemos, somos pisados, maltratados, chutados como cão. Aqui, fomos recebidos como reis.

Senhorinha e Doriva estavam atônitos, mudos.

– Fiquem quietinhos que nada acontecerá.

Afastaram-se, montaram na caminhonete, e sumiram na estrada deserta.

Doriva conseguiu ir até a porta da cozinha e, com os pés, rebentou a porta, e as cozinheiras soltaram-lhe a corda. Em seguida, desamarrou a patroa. O vestido escarlate com ramos de rosa estava sujo e os olhinhos dela estavam vagando no vazio. Estendendo as mãos para Doriva, soletrou com dificuldade:

– O que está acontecendo? Por que os convidados já foram embora? Nem esperaram a sobremesa…

Foi transportada para o casarão e a colocaram no sofá. Tudo estava revirado. No meio da vasta sala, as cartas que ela havia endereçado e selado para postar no correio. Simplesmente, ela esquecera de enviá-las.

Não se levantou mais. Morreu no último dia do ano.

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