A guerra de Jacques

CAPÍTULO 1 – Roermond

 

            A fria noite do inverno de dezembro de 1943 já tinha caído quando, depois de várias horas de um sacolejar barulhento e irritante, o trem finalmente parou. Que lugar seria aquele? O rapaz do fundo do vagão conseguiu esticar-se todo, contorcendo-se, para poder espiar através da minúscula abertura que aparecia para a noite, agora que o cabo SS tinha aberto a porta do vagão e descido com sua metralhadora na mão. Do chão da plataforma, apontando a arma para dentro, ele vociferou ameaçadoramente:

– Qualquer engraçadinho que pensar em descer leva chumbo!

Falou isso em alemão e poucos o entenderam lá dentro. Mas o gesto que aquilo significava não deixava a menor dúvida. Pelo escasso vão de menos de um metro aparecia uma placa de estação ferroviária. Nela via-se, em letras garrafais marrons, sobre um fundo palha, um nome. O jovem pronunciou-o em voz baixa, para seus companheiros de viagem mais próximos, dois passageiros mais velhos, entre os mais de setenta seres amontoados no vagão:

Roermond!

Gaston, o homem da agência do correio da Rue des Invalides, esticou o pescoço e confirmou:

– É mesmo. Conheço o lugar, já estive por aqui antes. É um grande entroncamento ferroviário.

– Já estamos na Alemanha, então? – Perguntou Samuel, o ourives judeu de Bruxelas, arregalando os olhos e apertando nervosamente o chapéu escuro sobre seus parcos cabelos brancos, o que acentuava ainda mais sua expressão de perplexidade e de medo.

– Não, isto aqui ainda é a Holanda. Mas se você seguir por menos de 10 quilômetros para o leste, você já estará na Alemanha.

– E é aí que eles vão nos deixar?

– Não, Samuel. Se você andasse em linha reta naquela direção, você chegaria a Dusseldorf, mas só depois de algumas horas. Mas nós estamos sendo transportados para outras cidades alemãs, mais ao norte. Nós vamos para algum lugar no vale do Ruhr. Ou melhor dizendo, para as minas de carvão daquela região – o velho agente dos correios mantinha sempre sua calma e seu ar professoral.

– Ah, sim – observou com amargura o ourives – nós somos os trabalhadores “voluntários”. Quer dizer, os mais novos escravos do Ministro Speer. Vão nos fazer trabalhar como umas bestas nas minas de carvão, até nos acabarmos. Da mesma forma como esses coitados do trem que acabou de parar aí do lado. Veja só a cara de desespero dos sujeitos.

De fato, uma outra composição acabara de estacionar no mesmo entroncamento ferroviário, ficando os vagões lado a lado, separados apenas por uma das vias. Também nela podia-se ver homens amontoados nos vagões de passageiros de terceira classe e até nos vagões de carga.

Exatamente como nós. É gado humano a serviço de Adolf Hitler – pensou Jacques, no exato momento em que um guarda saltou desse outro trem e veio conversar com o colega da metralhadora. Este começou o assunto:

– Então meu camarada, você também está levando sua carga para as minas de carvão? São belgas, como os meus aqui?

– Não, esses meus são todos franceses. Nosso trem está vindo de Paris, uma viagem longa, chata, cansativa. O seu saiu de onde?

– De Bruxelas, às 6 da tarde.

– Sorte sua. Nós estamos sacudindo desde manhã cedo, parando num monte de lugarejos, pegando mais e mais homens

para a grande siderúrgica.

– Vão para Essen, então?

– Sim, camarada. Esse comboio vai direto para as fábricas de Herr Krupp, o magnata. Meus franceses certamente devem ser considerados melhores do que os seus belgas, porque vão para as aciarias ou para as fundições. Não vão ser enfiados nos buracos das minas de carvão, como os seus.

O cabo cuspiu no chão e falou, com desprezo:

– Esta turma aqui vai morrer muito mais cedo do que os seus. Dizem que o trabalho nas minas é terrível, morre gente a toda hora. Além do que, aqui neste meu trem, tem mais do que homens para trabalhar só pela comida. Além dos trabalhadores belgas, estamos levando judeus e também uns idiotas da Resistência Belga. Esses você sabe bem o que os espera…

– Ah, sim, para esses é o fim da linha. Campo de concentração, trabalho pesado, muita fome, até que se acabem de fraqueza e doença. Ou que passem fogo em muitos deles.

– Quanto tempo vocês vão ter que esperar nesta estação? Nós vamos ficar parados mais de uma hora.

– Bem, não tenho certeza, mas acho que ouvi alguém falar em algo como duas horas, pelo menos. Aí desci para esticar as pernas e fumar, ficando longe daqueles franceses que não entendem uma única palavra do que a gente fala para eles, os imbecis.

Os dois soldados SS acenderam seus cigarros e começaram a fumar; e continuaram a conversar animadamente. Mas, ao mesmo tempo, não tiravam os olhos dos vagões pelos quais eram responsáveis. Realmente tinham ordens para atirar em qualquer prisioneiro que tentasse descer dos vagões.             Enquanto isso, no trem dos belgas, o rapaz do fundo do vagão voltou-se para o funcionário dos correios:

– Monsieur Gaston, é verdade o que aquele alemão

acabou de dizer, que os franceses vão se dar mais bem do que nós?

– Sim, meu rapaz. Vejo que você, como eu, entende

alemão. Infelizmente isso é verdade. O trabalho para eles vai ser bem menos perigoso do que para nós.

– E se a gente passasse para o trem deles? Tem centenas de caras amontoados, não iriam se incomodar com a gente. Nossa língua também é o francês, somos belgas da Valônia e podemos passar perfeitamente por franceses.

– Grande ideia, meu jovem. Agora é só você descer ali, pedir licença e convencer os caras das metralhadoras a deixarem você fazer a baldeação.

– E levar rajada de duas metralhadoras, em vez de uma só – falou o ourives Samuel, sacudindo a cabeça – Esses jovens!

– Mas eu estou falando sério. Eu vou tentar. Acho que dá para descer rapidamente e correr para o outro trem. É fácil. Tem que haver um jeito! Sempre há…

– E vai morrer, se pegarem você.

– Mr. Gaston, eu vou morrer do mesmo jeito numa mina de carvão. Só que todo preto por fora e por dentro. Não tenho nada a perder.

– Só a sua vida, meu menino. Só a vida – Samuel tinha um enorme medo de morrer. Mas era evidente que o jovem ali a seu lado não tinha essa preocupação, ou então era totalmente inconsequente.

– Se vocês me ajudarem, eu fujo deste trem e entro rapidamente no outro.

– Que loucura é essa? Ajudar como? – admirou-se o homem do correio.

– Fazendo alguma coisa que chame os dois guardas para este nosso vagão! Uma discussão. Vocês fingem brigar, arranjam uma confusão, eu aproveito e saio pelo outro lado. Já vi como posso destrancar uma das janelas do fundo. E aí, rapidamente, entro no vagão dos franceses.

– Você é louco, mesmo! E se tiver mais um guarda lá dentro, rapaz? – O ourives arrepiou-se todo ao falar isso.

– Se tiver mais um guarda, eles me matam. Só isso. Mas também pode ser que não tenha…

– Mas… e os franceses? Eles podem denunciar você.

– Podem, monsieur Samuel. Aí os nazis me pegam. Mas também pode ser que não me denunciem…

– Isso não tem como dar certo. Você é moço. É forte e seguramente pode aguentar até o fim da guerra, essa loucura não pode durar muito tempo mais. Já estamos em guerra há mais de três anos. Algum dia isto termina, mas a sua loucura pode acabar com a sua vida daqui a minutos.

– Ah, por favor, vocês não têm nada a perder, não correm risco nenhum, encenam uma briguinha, os boches não vão fazer nada contra vocês, precisam entregar vocês em condições de trabalhar nas minas. É só trocar uns tabefes, uns gritos, uns palavrões. Eu vou até uma janela e abro. Aí vocês começam o teatro, os guardas se distraem e eu, nesse momento, salto e corro para o vagão dos franceses. Só que tem que ser rápido pois os trens podem sair a qualquer momento. Vamos, por favor!…

Os dois homens concordaram, enfim. Talvez aquele garoto tivesse razão, pensou Mr. Gaston, talvez fosse melhor mesmo morrer logo, muito melhor do que passar por todas as provações que os esperavam. Menino corajoso! E esperto. Muito esperto. E ele mal devia ter uns vinte anos.

Convencidos os dois a cooperar, começaram a briga assim que o rapaz abriu silenciosamente a janela do outro lado do vagão, para assombro dos outros prisioneiros que puderam ver sua ousadia.

– Seu ladrão! Vigarista!

– Judeu nojento! Falsificador!

E ao se estapearem, batiam com força nos braços e no casaco um do outro, fazendo mais barulho do que agressão propriamente dita, mas acabaram rolando abraçados pelo chão, à vista da plataforma, chamando a atenção de todos. Imediatamente os dois guardas, surpresos com a confusão criada, subiram correndo no vagão e logo apartaram a briga, xingando e chutando os valentões. O responsável pelo vagão deles ameaçou-os e passou uma descompostura geral nos dois, em alemão, ao que todos os demais prisioneiros responderam com uma algazarra generalizada. No entanto, naquele momento de agitação, rápido como um raio, um esguio rapaz saiu do seu vagão pela janela, correu abaixado os poucos metros que o separavam da plataforma do vagão dos franceses, e procurou alçar-se ao vão entreaberto da porta.

Para sua surpresa, dois pares de braços surgiram do escuro e o suspenderam para cima. Outros braços o empurraram rapidamente para o fundo do vagão, fazendo-o passar espremido entre muitas outras pessoas. Era evidente que o estavam escondendo. Não, ninguém o havia denunciado. Muito pelo contrário…

Alguns minutos depois, deixando a estação de entroncamento, o trem com os “voluntários” franceses partiu para Essen, levando mais um passageiro entre os futuros operários do grande complexo industrial da família Krupp. Na verdade, tratava-se de um jovem de 22 anos, que tinha em suas mãos esplêndidos documentos de identidade falsos, que haviam sido forjados pela Resistência Belga, à qual pertencia. Um certo Jacques Rosen…

 

CAPÍTULO 2 – Você fala alemão!

 

Quando os olhos do intruso se acostumaram à escuridão reinante no vagão, ele pôde ver que compartilhava o exíguo espaço com algo como cem outros homens. Estavam todos mal alojados no vagão, alguns sentados em bancos improvisados, outros no chão coberto de palha úmida e até alguns em pé, mesmo com o trem já em movimento. Sem dúvida aquele era um vagão de carga que fora adaptado muito precariamente para o transporte de pessoas. De gado humano – voltou a pensar. Vários dos franceses em pé o cercaram, curiosos. Um deles foi logo perguntando:

– Você é louco, camarada?

– Não, eu sou belga! – respondeu o homem de Bruxelas, sorrindo – E olhem, muito obrigado por me receberem no Expresso Oriente de vocês.

– Além de louco, ele também é engraçadinho – comentou outro francês, sorrindo também – Por que você se arriscou desse jeito, estava a fim de levar uma rajada de metralhadora?

– Vai ver ele estava com coceira na barriga, Vincent. O guarda alemão não viu o que se passou e ficou devendo essa ao nosso amigo belga!

Jacques notou que todos ao seu redor eram extremamente jovens, assim como ele. Mencionou isso e Vincent lhe respondeu:

– O pior sobrou para nós. Os caras mais velhos estão nos vagões de passageiros, esses podem sentar a bunda nos bancos mais confortáveis. A gente aqui tem que se arrumar nos bancos de madeira ou como pode no chão de palha mesmo. Você já vai ver, com esta droga andando agora, o quanto é bom ser jogado para todos os lados.

– Muito pior – falou um rapaz ruivo de barbicha – Você vai ver o que é ter que conviver com um monte de machos a viagem inteira. Ainda se fossem umas “gostosas”…

– Logo, logo, você vai ver o que são “gostosas” na Alemanha, Henri. Quer dizer, vai deixar de ver. Por muito tempo! Se dê por muito feliz se lhe deixarem ficar na latrina o tempo suficiente para você poder se aliviar.

Os outros ao redor riram alto, mas Henri mostrou em sua expressão que havia acusado o golpe. Prisioneiro, trabalhador forçado, como é que ia conseguir uma mulher? E para um francês, uma vida sem vinho e sem mulheres não valia a pena ser vivida, caramba! Um rapaz alto e espadaúdo, vestindo uma espécie de casaco militar aproximou-se e perguntou?

– E aí, belga, por que você nos deu a honra e o prazer de sua companhia?

– Simples. A minha Companhia de Elite, naquele outro trem, está indo para as minas de carvão, em algum buraco do norte da Alemanha. Aí eu soube que vocês são da nobreza metalúrgica, que vão para a Krupp. É verdade, não?

– Sim, de fato, nós vamos paras as indústrias de Essen. Lá os boches fabricam de tudo, de aço a canhão. Dizem que é um mundo, de tão grande. É, tenho que reconhecer, você foi esperto, belga. Nas minas você, franzino desse jeito, estava acabado em dois tempos. Ainda mais que, pelo que ouvi falar, eles tratam os prisioneiros a pão e água por lá. Os caras se matam no trabalho e ganham uma ração de comida que é uma miséria.

– É isso mesmo, Charles. E é tudo de propósito, sabe, belga. Os caras estão indo trabalhar, mas, na prática, vão ser mortos aos poucos. Mas, enquanto isso não acontece, pagam em carvão por sua execução, até se acabarem.

– Malditos alemães!

– Cuidado, Vincent, nosso cabo está voltando.

– Não tem problema. Esse imbecil não entende uma palavra de francês, Antoine. Posso mandar ele tomar no rabo, que ele vai ficar com a mesma cara de imbecil de sempre.

O Cabo Heinz entrou no vagão, instalou-se em um local de onde podia observar todos e deixou a porta entreaberta. Levantou sua metralhadora, seu cetro de imperador, e falou um monte de coisas em alemão, o que ninguém no vagão entendeu. Estranhamente um rapaz delgado, de cabelos pretos, que ele ainda não tinha notado no vagão, fez um sinal de silêncio aos outros e falou por um tempo a eles em francês, apontando várias vezes em direção ao cabo. Heinz sacudiu a cabeça, atordoado. Será que ele tinha tido tanta sorte que um daqueles miseráveis franceses estivesse traduzindo o que ele tinha falado aos idiotas? Dirigiu-se ao rapaz e perguntou-lhe:

–  Sprechen sie deutsch?

Jawohl, mein Hauptmann! Falo alemão, sim – respondeu Jacques, batendo os calcanhares e fazendo uma espécie de continência com a mão direita.

Entusiasmado com a situação, o cabo passou a conversar com aquele milagre falante materializado à sua frente. Explicou-lhe que ele não era capitão coisíssima nenhuma, era apenas um cabo. Mas quis saber por que o rapaz não tinha mostrado antes que sabia falar alemão.

– Fiquei com medo dos meus companheiros, senhor, achei que eles podiam não gostar. Mas depois que conversei com alguns deles, achamos que poderia ser melhor para todos e resolvi enfrentar essa possibilidade e cooperar para facilitar as coisas, senhor.

– Só Cabo Heinz, para você, rapaz. Você caiu do céu para mim, não sabe que alívio poder contar com um intérprete. Como é mesmo seu nome?

– Jacques, às suas ordens, Cabo Heinz.

– De que lugar você é?

– Moro em Bruxelas, cabo. Sou belga.

– Mas como você está aqui com os franceses, então? E como aprendeu alemão?

Jacques já tinha arquitetado antes a história que teria que contar para se explicar naquele vagão e respondeu imediatamente:

– Eu estava de passagem em Paris quando fui recrutado para o trabalho voluntário na Alemanha. E eu falo alemão desde criança, porque minha mãe é alemã. E, como um belga da Valônia, falo tanto o francês quanto o flamengo. Posso traduzir qualquer um desses idiomas para os outros dois.

O Cabo exultou de contentamento:

– Rapaz, você caiu do céu mesmo. E não só para mim.

Para os meus colegas guardas, para os meus superiores também. E, quando vocês estiverem nas fábricas, você poderá continuar a desempenhar esse seu papel e nos ajudar a todos. Inclusive, ajudar os franceses e os outros belgas. Já temos muitos deles por lá, em Essen.

Jacques sorriu calmamente, mas por dentro dava pulos de alegria, comemorando sua audácia. Como tinha valido a pena correr aquele minuto de risco, em que seu coração havia disparado a ponto de quase lhe saltar do peito!

 

CAPÍTULO 3 – Convite indesejado

 

Depois que o trem saiu da estação, as conversas foram se aquietando aos poucos. Já era mais de dez horas da noite e muitos foram se entregando ao sono, apesar do extremo desconforto do vagão malcheiroso e do infinito e monótono sacolejo. Sentado no chão, deixando-se sacudir recostado à parede lateral, Jacques estava muito longe de poder abrigar qualquer sono. A esta hora, em sua vida normal de barman de um dos hotéis mais charmosos de Bruxelas, a noite estaria apenas começando, com os clientes chegando para mais uma rodada de aperitivos, naquele elegante bar em que trabalhava. Estava acostumado a entrar madrugada adentro, preparando drinques até que o último hóspede ou cliente se retirasse. E agora, de uma hora para a outra, sem aviso, todo o seu mundo tinha desmoronado.

Lembrou-se que, neste maldito dia, pouco depois do almoço, quando estava conversando com os colegas e esperavam o início do turno da tarde, de repente entraram aqueles homens fardados de SS nazista, acompanhados de quatro civis belgas, que deveriam ser colaboracionistas. Rapidamente estes selecionaram doze entre os funcionários e passaram a conferir as identidades, tudo feito a partir de uma lista adredemente preparada. Enquanto isso, aquele que parecia ser o mais velho entre os civis belgas que acompanhavam os SS falou:

– Meus jovens, vocês tiveram a suprema honra de serem selecionados para trabalhar pela glória do III Reich, no nosso esforço de guerra, a que todos os patriotas devem dar sua contribuição. Os oficiais e a tropa SS que está aí fora irão escoltá-los diretamente para seu trem, que parte ainda hoje, às 18 horas. Amanhã de manhã vocês já estarão em seus novos lares e começarão de imediato a trabalhar em suas novas colocações, dentro do sagrado solo alemão; e lá mesmo serão registrados como funcionários do esforço de guerra. Eu tenho inveja de vocês, meus companheiros. Infelizmente estou velho demais para poder colaborar nessas nobres funções.

Os rapazes, que pouco antes estavam rindo e brincando descontraídos, ficaram estupefatos. E apavorados. Não podia haver dúvida, aquele maldito traidor só podia estar falando a verdade. A cara e a atitude dos SS não deixavam qualquer dúvida: estavam sendo convocados para o programa de trabalhos “voluntários”, como já tinha acontecido com tantos outros compatriotas seus.

Bastide, o bell-boy de 18 anos, lembrou-se, apavorado, do tio de sua namorada, que tinha sido levado para a Alemanha há mais de um ano e nunca dera notícias. Algumas semanas antes chegara uma carta, comunicando que ele havia morrido em um campo de trabalho, sem fornecer maiores explicações à família. Num gesto de puro desespero, o rapaz correu para a janela e saltou do 2º andar para o pátio, amortecendo como pôde sua queda de encontro a uma árvore adjacente. Do salão onde estavam, todos ouviram alguns baques surdos e vários gritos provenientes da tropa que acompanhava os recrutadores. Minutos depois, Bastide era trazido de volta, manietado e escoltado por três soldados SS. Sangrava na boca e na bochecha. E arrastava o pé que havia machucado na queda. Por azar, tinha pulado bem no meio dos soldados que aguardavam no pátio interno! Um dos oficiais sacou sua arma e a encostou na cabeça do moço, que tremia apavorado. O militar, apesar de um forte sotaque, falou em um francês perfeito:

– Com que então temos um esperto aqui, hein! Nossas ordens mandam estourar seus miolos agora mesmo, seu palerma. Mas você tem sorte, porque eu acho que é uma bobagem desperdiçar um bom par de braços para o trabalho de guerra; acho melhor deixar você viver para produzir. Como castigo pela sua revolta, você não vai poder buscar suas coisas, nem se despedir de ninguém. Guardas, podem levar o fujão. Passem primeiro um par de algemas. E olho nele. Se fizer qualquer nova gracinha, podem atirar sem dó.

Os soldados fizeram meia-volta e saíram levando o incauto rapaz aos tropeções. Apesar da dor, ele estava assustado demais para falar ou fazer qualquer coisa. Inclusive chorar, que era a sua única vontade naquele momento. O mesmo oficial, enquanto guardava sua arma no coldre, perguntou:

– Alguém mais aqui pensa em fugir? Ou tem algum tipo de reclamação a fazer?

Vários pares de olhos assustados miraram-se entre si. Ninguém teve coragem de falar nada. O colaboracionista mais velho retomou a palavra:

– Esse moço é um insensato, não sabe dar valor à oportunidade que está recebendo. Vocês irão todos para a Alemanha, onde terão empregos garantidos, muito melhores do que aqui nesta Bélgica decadente. Receberão bons salários, roupas especiais de trabalho e todos os cuidados necessários. Se reagirem de acordo com o que se espera, serão até promovidos. No fim da guerra, após a vitória total, poderão escolher se querem voltar para cá, ou ficar em seu novos e melhores postos na Alemanha. Vocês serão tão vitoriosos quanto estes valorosos militares aqui. Trabalharão e o trabalho os libertará.

Jacques olhou para René, o subgerente. Tinham justamente conversado sobre isso um par de dias atrás. Eles sabiam que tudo o que aquele imbecil estava falando era uma mentira deslavada. O voluntariado, na totalidade dos casos, era compulsório e o trabalho que estava programado para eles não os libertaria coisíssima nenhuma. Muito ao contrário, iria fazer deles nada mais do que trabalhadores escravos a serviço do governo alemão. Trabalhariam para os invasores até se esfalfarem e morrerem em razão das precárias condições a que os sujeitariam. Isso se antes não fossem vítimas de doenças ou dos agora constantes bombardeios que os aviões dos aliados faziam contra as cidades e instalações militares e industriais na Alemanha. O recrutador belga continuou falando:

– Já recolhemos as fichas dos convocados na administração do hotel. Portanto, vocês já estão oficialmente alistados para o esforço de guerra. Não poderão mais sair de dentro deste hotel, até que lhes seja dada a ordem de embarque no caminhão que vai levar todos vocês para a estação ferroviária daqui a algumas horas. Não seremos loucos de lhes dar qualquer ocasião para fugir ao dever patriótico, como tentou fazer aquele rapaz irresponsável.

Antoine, o auxiliar de cozinha teve a coragem de perguntar:

– E como fazemos para pegar nossas coisas para a viagem, se elas estão nas nossas casas?

– Vocês sairão em grupos, de três em três, serão levados e escoltados em veículos militares até seus endereços. Os soldados vão entrar com vocês em suas casas e têm ordem de atirar em quem quiser fugir. Peguem só roupas quentes e material de higiene. Nada de malas, façam apenas trouxas. Pequenas! Entendido?  E se alguém quiser bancar o espertinho e fugir, usaremos esta outra lista, que convoca outros três novos nomes para cada um de vocês que tiver a ousadia de tentar fugir. Aliás, quem aqui é Marcel?

– Eu, respondeu o baixinho ao lado de Jacques.

– Conhece Henri DeGussem, Charles Roelants e Lucie Deschamps Argot?

– Conheço sim, disse Marcel. Lucie é minha prima e os outros dois são meus amigos.

– Eles serão nossa garantia que você vem conosco sem causar problemas….

– E as pessoas? Como vamos avisar as pessoas, nossas famílias? Como vamos nos despedir delas? – Perguntou, preocupado, Clement, o velho porteiro do hotel.

– Ora, você se aflige à toa. Você não nos interessa, não é jovem como esses outros, vai ficar. Mas já que perguntou, quem encontrar sua família em casa, se despede sem fazer dramas, bem rápido. Se não tiver ninguém em casa, nós vamos permitir que ainda tentem telefonar aqui do hotel. Se as pessoas não tiverem telefone, então paciência, deixem uma carta que será entregue ao destinatário. De qualquer forma, se elas perguntarem por vocês aqui no hotel, certamente serão informadas da viagem e do destino de cada um, isso eu prometo. A direção do hotel está autorizada a dar essa informação e o seu novo endereço. Mas tem uma coisa que vocês precisam saber: nenhum parente, mãe ou esposa pode ir se despedir de vocês na estação ferroviária. Não só eles não serão admitidos, como correm risco de serem detidos para averiguação; peçam a seus parentes e amigos que não se arrisquem.

E assim foi feito. Os doze jovens funcionários recrutados no hotel ficaram sob guarda de soldados SS e foram levados até suas casas por veículos militares alemães, sempre três pessoas em cada veículo, acompanhados de uma escolta. Voltavam em menos de uma hora e então saiam mais três. Até o fim da tarde estavam todos prontos, com magras trouxas de pouco pertences, a maior parte composta por artigos básicos de higiene e roupas quentes para enfrentar o frio inverno de 1943.

Pouco antes das seis da tarde já estavam todos dentro do trem, socados num vagão de carga mal adaptado, superlotado, com poucos bancos, insuficientes para que todos pudessem sentar, no qual alastrava-se um odor acre. Acomodaram-se como puderam, cada um com um volume com seus pertences e, pontualmente às 6 horas, o trem partiu da estação. Bruxelas e a Bélgica ficaram para trás em poucas horas, quando o trem fez uma inflexão para o norte e entrou na Holanda.

Agora, com o corpo e cabeça jogados para os lados pela força do balanço constante do trem, Jacques continuava com a mente fixada naquele momento, que foi o mais angustiante de sua jovem vida. Marie Louise! Não pudera nem se despedir dela. Haviam-lhe permitido telefonar para a firma onde ela trabalhava na contabilidade, mas na empresa não aceitaram chamar a funcionária. Tudo o que ele conseguiu fazer foi deixar com um colega do hotel uma carta curta e lacônica onde, em breves linhas, explicava o que estava acontecendo, jurava seu amor e afirmava que assim que pudesse voltaria para casar com ela.

Agora só Marie Louise seria o elo que o prenderia à vida. Não que ele fosse um homem fraco, desses que pensam em abandonar tudo e se matar à primeira grande dificuldade. Porém o que Marie Louise fazia em sua mente era ligá-lo à vida que tinha tido em Bruxelas, a um passado e presente em que se sentia feliz e com muitas esperanças de um futuro melhor, um futuro que planejara construir com aquela garota belga, assim que a maldita guerra acabasse.

O longo caminho da estrada de ferro o levava agora para o pesadelo nazista, para ser “trabalhador voluntário”. Voluntário para os que, iludidos, o aceitavam; ou compulsório, para aqueles que o rejeitavam. De qualquer maneira, era a pior das perspectivas de futuro imediato para qualquer um. Mas Jacques, em razão de sua natureza, sempre tivera dentro de si um otimismo e uma confiança inabaláveis na vida e no futuro. A maldita guerra não haveria de durar para sempre. Era evidente que o quadro estava se invertendo e a Alemanha caminhava para a derrota certa. Mais um ano, ou, se tivessem menos sorte, talvez dois… Mais do que isso não poderia durar esse pesadelo monstruoso.

Então, tudo o que ele tinha que fazer era resistir. Aguentar. Continuar e, acima de tudo, sobreviver. Porque tinha, sim, um motivo forte para sobreviver. E este motivo estaria lá em Bruxelas, esperando por ele. Em Marie Louise, em sua lembrança, ele acharia as forças necessárias para resistir ao que viesse. E tudo o que poderia vir de melhor no seu futuro, seria o retorno feliz ao seu passado, à segurança de sua querida Bruxelas.

Enquanto esboçava um leve sorriso no escuro, lembrando das danças e dos passeios felizes com Marie Louise, Jacques cogitava se teria a mesma determinação de resistir e sobreviver se não tivesse uma pessoa aguardando seu regresso. Sim, talvez estivesse agora vivendo o mesmo desespero cruel que via estampar-se nas faces de seus companheiros de vagão.

Mas não, ele não entraria em desespero, não perderia a confiança própria e na vida. Não importavam os tormentos que tivesse que passar, haveria de sobreviver. Continuar vivo era sua primeira e grande meta. Se não conseguisse, se viesse a morrer, então não teria mais que se preocupar com nada. Porém, enquanto estivesse vivo, manteria suas energias concentradas em continuar vivendo, um dia por vez e nada mais. E então, quando a guerra acabasse para ele, voltaria à sua vida anterior, voltaria para Bruxelas. E enquanto isso não fosse possível, não se desgastaria inutilmente, não sucumbiria à depressão, nem à desesperança. Ainda pensava fixamente no que era agora seu passado, quando alguém, um dos franceses que estava em pé no escuro, olhando para fora do vagão pela escassa abertura de uma janela redonda e pequena como uma escotilha, avisou:

– Já estamos na Alemanha. Estamos atravessando a ponte sobre o Ruhr, logo estaremos passando por Duisberg. Em seguida vem Essen, nosso destino final. E depois, a aciaria….

A fábrica dos Krupp! A grande fundição de ferro e laminação de aço, um complexo industrial gigantesco onde era produzida boa parte dos armamentos pesados alemães, inclusive os grandes tanques de guerra e os maiores canhões do mundo. A aciaria poderia representar de fato, para ele e seus novos companheiros, uma chance maior de sobrevivência. E isso era o que ele mais queria e precisava: sobreviver. Por um momento lembrou-se com gratidão do funcionário dos correios e do ourives, que o haviam ajudado a fugir do trem dos belgas. Para onde estariam indo eles agora? E Samuel, o bondoso Samuel, tão respeitado pelos outros, para onde seria enviado, uma vez que era judeu? Que chance teriam aqueles antigos companheiros de viagem, seus outros colegas de hotel, inclusive, tão jovens quanto ele?

Concluiu que era hora de voltar a pensar fixamente em Marie Louise, para se acalmar e voltar a ter esperança. Tinha tido suficiente presença de espírito e muita sorte, ao ousar o golpe de audácia que o levou para dentro do vagão dos franceses. Agora era só isso que importava. Estava indo para a aciaria e, como lhe haviam falado no vagão dos belgas e confirmado no vagão dos franceses, os trabalhadores “voluntários” da Krupp eram mais bem tratados que os das minas ou os que tinham que trabalhar nas lavouras e na reconstrução de estradas, ferrovias, pontes e edifícios, que eram frequentemente destruídos pelos bombardeios dos ingleses e dos americanos.

Ah, os bombardeios!… Esse era, sem dúvida, um grande e terrível problema, um problema que não existia em Bruxelas. Mas, ali em Essen, eles vinham acontecendo constantemente. E um dos alvos, obviamente, era a indústria dos Krupp. Será que, depois de enfrentar todas as dificuldades do trabalho pesado e do perigoso convívio com os nazis, ele acabaria explodido por um aviador qualquer do outro lado do Atlântico, que o despedaçaria a partir de seu caça ou bombardeiro?

Não, não podia pensar assim! Se ele e os franceses estavam sendo trazidos à força para trabalhar nas indústrias Krupp, era sinal que os bombardeios não eram assim tão severos ou então que não conseguiam destruir seus alvos, pois as fábricas continuavam funcionando, as armas continuavam sendo produzidas e transportadas por rodovias e ferrovias. E assim, no trem, ele estava decidindo quais seriam seus próximos passos: haveria de sempre estar em alguma parte da fábrica menos suscetível de ser atingida pelas bombas dos ianques ou dos britânicos. Não morreria por causa dos bombardeios.

Aliás, não morreria de forma alguma, porque ele tinha um futuro a conquistar. E esse futuro era voltar para o passado, para os braços de sua namorada. Havia prometido que iria casar com ela. Não seria um aviador nazista, americano ou inglês que haveria de impedi-lo. Ele era Jacob Miedzinski, que os outros tinham que tratar por Jacques Rosen, porque esse era o nome e sobrenome que constavam nos seus documentos habilmente forjados pela Resistência Belga. E Jacob Miedzinski, nascido na Polônia, ou Jacques Rosen, crescido, criado e “recriado” nos papéis na Bélgica, eram um só e mesmo homem de palavra. Havia prometido a si mesmo que sobreviveria à Alemanha e à guerra. Pois agora prometia a si mesmo que sobreviveria também aos pilotos e às suas bombas incendiárias. E ele, Jacques, era um homem de uma palavra só.

 

CAPÍTULO 4 – Batismo de fogo

 

Ao se acercar da plataforma, o Cabo Heinz abriu de vez a porta do vagão com o trem ainda em movimento e berrou:

– Tradutor! Onde está o tradutor?

– Aqui, senhor – respondeu Jacques, imediatamente.

– Muito bem, rapaz. Ainda bem que você está aqui conosco. Chegamos ao ponto final do nosso passeio! Avise seus camaradas que chegamos a Essen. Que todos se levantem e se prepararem para desembarcar. Peguem suas trouxas, tudo o que trouxeram e não esqueçam nada. Quando o trem parar na plataforma eu darei a ordem para o desembarque. Você desce primeiro, belga. E fique ao meu lado, traduzindo o que eu falar. Diga para eles descerem em ordem, um de cada vez, formando uma fila por dois na plataforma da estação.

Jacques traduziu tudo e o cabo ainda acrescentou:

– Aviso: haverá muitos soldados armados para escoltá-los. Portanto, não tentem fugir, porque será morte certa. Do lado de fora da estação, os caminhões estão à espera para transportar os passageiros dos vagões. Um caminhão para cada vagão. O de vocês vai direto para um dos acampamentos da Indústria Krupp. Pensando bem, vocês até que são uns caras de sorte. Outros trens trazem trabalhadores que vão para lugares bem piores.

Menos de dois minutos depois, o trem chegou ao seu destino final e parou com um forte rangido de ferro guinchando nos trilhos. A locomotiva soltou três longos apitos ensurdecedores e a plataforma da estação foi inundada por um grande número de soldados armados, que entraram em marcha acelerada. Então eles se dividiram em grupos e cada grupo foi se postar ao lado de um dos vagões dos trens recém-chegados.

Será o inferno? – pensou Jacques, olhando para a plataforma – Talvez. Mas se for, hei de saber conviver com o próprio diabo em pessoa. E permanecer vivo.

Finalmente as portas foram todas abertas e vários apitos foram trilados. O cabo desceu e chamou Jacques:

– Fique aqui comigo, belga. Desça. Está na hora, mande todos os outros descerem também. Todos em ordem e formando uma fila aqui, bem ao lado dos soldados.

Jacques traduziu as ordens e os franceses desceram devagar, praguejando e xingando Hitler em voz baixa. Foram se postar nos lugares que lhes foram designados pelo cabo. Este estava conversando com um tenente. Parecia feliz e aliviado. Chamou Jacques novamente:

– Belga… Jacques é o seu nome, não é mesmo? Olhe, minha missão terminou. Vocês estão livres de mim e eu de vocês. Estou indo embora. Mas já recomendei você ao tenente aqui. Você vai ficar ao lado dele e traduzir tudo para o francês, sempre que ele precisar. A companhia dele é que vai levar vocês para a Krupp. Pareceu hesitar por um momento, mas depois, dando um leve tapa nas costas do rapaz, falou:

– Certo, belga. Minha tarefa teria sido bem pior sem você nesse vagão. Boa sorte e até a vista. Auf Wiedersehen.

Depois de se despedir, Jacques foi imediatamente requisitado pelo tenente que estava encarregado de conduzir o embarque dos “voluntários” franceses nos caminhões que os aguardavam do lado de fora da estação. O tenente era um homem alto, com uma postura afável, sem aquela pose agressiva de superioridade, típica dos oficiais SS. Jacques ficou agradavelmente surpreso com a impressão que teve dele. O militar lhe disse:

– Seja bem-vindo, tradutor. Sou o Tenente Horst Schadeck. O Cabo Heinz me disse que você é belga. Qual é o seu nome?

– Jacques, senhor. Jacques Rosen.

– Muito bem, Jacques. Você vai ser de grande valia para todos nós. Fique aqui comigo, para traduzir minhas ordens aos franceses. Vocês estão todos destinados ao trabalho nas indústrias Krupp, já devem saber disso.

– Sim, senhor, foi o que nos foi dito pelo cabo. Estamos em Essen, portanto.

– Sem dúvida. Esta é uma cidade que já foi uma joia, mas hoje está muito castigada pelos bombardeios dos aliados, como você vai poder ver amanhã, quando o dia clarear.

– É muito grande, senhor?

– A oitava maior da Alemanha. Mas, acima de tudo, é a cidade dos Krupp.

– Muito poderosos, imagino, senhor.

– Sim, belga. Riquíssimos. Faz quase quatrocentos anos que estão por aqui, hoje mandam em tudo. E, com a guerra, estão ganhando dinheiro como nunca, por mais que o inimigo destrua um ou outro pedaço do império deles, de vez em quando.

– As fábricas são os alvos para os ataques, então?

– Constantemente. Há mais de um ano que eles insistem. E a velha Krupp continua funcionado normalmente. Destroem num dia, e mandamos reconstruir no outro. E o negócio segue faturando alto.

– Então vamos correr perigo nesta cidade…

– Certamente, belga. Como correriam em qualquer outra cidade grande e industrializada da Alemanha, nestes dias. Não faz diferença. Os malditos aliados bombardeiam tudo! Mas vamos nos apressar. Quanto antes recolhermos esses homens aos caminhões e sairmos daqui melhor para todos. Estações ferroviárias atualmente não são os lugares mais seguros da Alemanha.

Jacques entendeu que o Tenente sugeria haver uma alta possibilidade de um bombardeio dos aliados às ferrovias e suas estações. Essen era um importantíssimo ramal, um entroncamento vital para os transportes da região do Ruhr e, portanto, deveria ser um alvo potencial para os aliados. Começou imediatamente a traduzir os comandos do Tenente Schadeck para os prisioneiros franceses, que desembarcavam e se perfilavam na plataforma, conforme lhes era indicado.

Alinhados ao lado do destacamento de soldados que fariam sua vigilância, os franceses foram contados e recontados, seus documentos foram rapidamente conferidos e, logo após, foram levados para junto de seus respectivos caminhões, do lado de fora da estação. Para isso, Jacques ia traduzindo as ordens do Tenente Schadeck e ouvindo, sem traduzir e rindo por dentro, os xingamentos dos franceses.

De repente, um ruído irrompeu, avassalador, como se todas as trombetas do apocalipse começassem a tocar juntas. Por toda a cidade de Essen, potentes sirenes de alarme começaram a soar ao mesmo tempo. Na estação, uma delas, mais próxima, começou a tocar depois das outras, com um barulho estridente, como que gritando a palavra que espocava na mente de todos, trazendo angústia e pânico: bombardeio!

– Bem-vindos ao inferno! – Berrou o eletricista Jean Louis, de Lyon – Satanás nos recebe com suas trombetas e o fogo do inferno.

As luzes da cidade foram todas apagadas. O blackout fez-se total, para dificultar a orientação dos aviões inimigos, que em poucos minutos estariam despejando toneladas de bombas sobre Essen. No mesmo instante começou o ribombar impressionante dos canhões antiaéreos pela cidade e pelos seus arredores. Ele encobriu o ruído agudo das sirenes, que logo depois deixaram de soar, por não serem mais necessárias. Mas encobriu também o ruído mais temido, o dos motores das centenas de aviões bombardeiros, que se aproximavam a grande altitude, além do alcance das baterias antiaéreas.

Mas, em breve, eles teriam que descer mais e se expor à artilharia para melhor enxergar os alvos que queriam atingir. E a partir daí, não estariam mais a salvo dos canhões de defesa antiaérea.  A cidade e o céu estavam igualmente escuros naquele horário de perto de meia-noite. Mas as explosões dos petardos antiaéreos, além de poderosos holofotes, iluminavam lá em cima o suficiente para que todos, embaixo, começassem a distinguir o brilho metálico assustador das temidas fortalezas voadoras dos norte-americanos. Aquilo tudo era novidade para Jacques, que, na Bélgica, nunca tinha visto algo assim. Era impossível saber quantos daqueles aviões enormes, os B-29, as monstruosas fortalezas voadoras, pairavam sobre a cidade. Certamente eram várias centenas deles, provavelmente mais de mil.

O tenente, com a frieza profissional de quem já estava acostumado com inúmeros outros bombardeios, ia explicando:

– Não se apavore, francês. Quer dizer, belga. Isso acontece um monte de vezes por mês. Eles aparecem, despejam toneladas de bombas, matam um monte de gente, quase sempre civis, destroem centenas de casas, arrebentam algum galpão da Krupp, e, de vez em quando acertam uma ponte ou uma estação como esta. Mas a maior parte das vezes eles erram quase tudo.

– Erram como, tenente?

– Eles não sabem onde estão jogando as bombas, apertam os botões no escuro em qualquer lugar e só querem saber de voltar para casa, mortos de medo. Nossos canhões antiaéreos e nossos caças atacam os bombardeiros sem parar. E os aviões deles são grandes, pesados, ruins de manobrar, mas o problema é que são muitos. Então eles arrebentam com a gente e a gente arrebenta com eles. Fique só olhando, daqui a pouco você vai ser um festival de paraquedas americanos voando pelo ar.

– Uma invasão de paraquedistas?

O Tenente riu, sacudindo a cabeça.

– Que nada, belga. São os caras das tripulações dos aviões atingidos. Essas fortalezas voadoras têm oito tripulantes cada uma. Quando uma delas é alvejada e eles vêm que não tem mais jeito, se tiverem a menor chance, eles saltam para salvar a pele. Às vezes não dá, caem todos juntos com o avião. Mas geralmente eles se salvam.

– Sim, mas nesse caso… quando chegam aqui em baixo, não são abatidos imediatamente? Até pelos civis, afinal eles estavam matando a população inocente da cidade, velhos, crianças.

– Que nada, rapaz. Nós os militares, não deixamos. Tem uma tal de Convenção de Genebra que proíbe que sejam abatidos no ar. Além disso, temos ordens para pegar os sujeitos vivos e aprisioná-los, protegendo-os. E de tratá-los muito bem

– Mas por que razão, senhor?

– Nós os trocamos pelos nossos pilotos abatidos, que caem de paraquedas atrás das linhas deles, é simples assim. Se nós tratamos os caras deles bem, eles tratam os nossos caras bem. E também nos interessa interrogar esses camaradas. Às vezes eles estão tão loucos da vida com a guerra e com os superiores deles, que vão logo falando tudo.

Nesse momento, mais um ronco ensurdecedor se somou ao resto: rente à estação passou uma esquadrilha de aviões alemães de caça, que acabava de decolar de uma pista próxima.

– São nossos caças Stukas, coitados. Os caras vão para o sacrifício, vão enfrentar os Thunderbolt dos americanos e os Spitfires dos ingleses. Os Stukas estão muito velhos, já há poucos deles na ativa. Mas logo atrás vão passar nossos aviões melhores, veja só, esses são Messerschmitt 109, grandes caças. E atrás desses vem alguns Messerschmitt 110, os melhores. Hoje a briga vai ser boa lá em cima. Stukas, 109 e 110 contra Fortalezas B-29, Thunderbolts e Spitfires.

Nesse momento começou uma sinfonia de assobios diferentes, formada por miríades de silvos estridentes, anunciando que a primeiras bombas já estavam caindo sobre eles. O Tenente gritou:

– Vamos cair fora; acelerar! Mande seus franceses entrarem nos caminhões! Está na hora de sumir daqui. Uma estação ferroviária não é exatamente o melhor lugar para se ficar durante um bombardeio. Schnell! Depressa!

Jacques bradou para seus companheiros:

– Aos caminhões, entrem nos caminhões. Vite! Depressa. A estação pode ser bombardeada e temos que sair correndo!

Os franceses criaram asas nos pés e se jogaram nos caminhões de qualquer jeito, com suas trouxas nas mãos, embolando-se em pânico.

– Liguem os motores, idiotas, o que estão esperando – gritou o tenente para os motoristas. Querem levar uma bomba na cabeça?

Os motoristas imediatamente atenderam à ordem e saíram com um arranco tão forte que vários dos seus passageiros foram jogados ao chão. Estes se ergueram instantaneamente e correram para pular nos veículos que tentavam se afastar o mais rápido que podiam.

Então os silvos das bombas desapareceram sob os estrondos ensurdecedores das explosões. O terreno sobre o qual se deslocavam começou a estremecer sem parar. Milhares de bombas se sucediam, despejadas pelas fortalezas voadoras. Na frente vinham as bombas de fósforo, de iluminação, que apenas produziam um efeito luminoso, ajudando os pilotos e artilheiros a enxergar um pouco dos alvos lá em baixo, o que, na prática, não servia para grande coisa. Nos segundos seguintes chegavam as bombas de destruição e as bombas incendiárias. Ato contínuo, uma parte da cidade subiu aos ares e começou a queimar. Em revide, as baterias antiaéreas matraqueavam sinistramente o céu incandescido.

Os caminhões com os franceses saíram da frente da estação e tomaram rumos diferentes, enfiando-se em ruas e ruelas adjacentes, evitando andar em comboio e se desviando das grandes avenidas, como se fosse possível se esconder das bombas. De qualquer forma, a iniciativa rendeu resultados pois, segundos depois, uma bomba varreu do chão a maior parte da estação ferroviária, destruindo também alguns dos vagões estacionados, felizmente já esvaziados de sua carga humana. O que restou em pé passou a queimar imediatamente. Ainda havia alguns poucos caminhões retardatários sendo carregados com prisioneiros e soldados em frente à estação. Dois deles foram pulverizados na hora.

Um destes caminhões embarcava os últimos belgas provenientes de Bruxelas. O caminhão em que estava o ourives Samuel foi desintegrado com a explosão da bomba e ardeu por alguns minutos, livrando-o assim do destino cruel que o esperava no campo de concentração para onde seria levado. A morte instantânea e indolor o resgatou da vida sofrida e da morte lenta que certamente o esperavam. Em outro caminhão, que já estava bem longe da estação destruída, Gaston, o agente de correios de Bruxelas, nada ficou sabendo.

O caminhão de Jacques passou por uma bateria antiaérea

no exato momento em que esta disparou. O belga ergueu os olhos para o céu e viu, segundo depois, um avião de caça inglês ser atingido em cheio pelo disparo.

– Um Spitfire! – gritou o tenente – Olhe, se arrebentou inteiro. O piloto não vai conseguir pular.

De fato, segundos depois, os restos do aparelho despencaram bem próximo a eles, como uma chuva de detritos, entre os quais foi possível reconhecer o corpo do piloto ainda preso a seu assento e o resto do cockpit, rodopiando sinistramente no ar, em queda livre. O conjunto espatifou-se sobre o telhado de uma casa, precedido pelo motor do avião que havia sido seccionado do resto da estrutura. Uma das asas seguiu rodopiando pelo ar e foi se estatelar a mais de oitenta metros de distância. Jacques falou:

– Veja, tenente: paraquedas! Aliás, um monte deles.

– São os mascadores de chicletes, os cowboys. Para eles, por enquanto, a guerra acabou. Tiveram sorte hoje.

– Sorte, senhor?!

– Claro, belga. Vão ser recolhidos, alimentados, bem tratados, vão ficar um bom tempo de férias como prisioneiros, enquanto os outros compatriotas deles e nós, alemães, vamos continuar nos matando uns aos outros todos os dias. Isso, é claro, se não forem vítimas do fogo amigo.

– Fogo amigo, tenente?

– Sim, se o lugar para onde eles vão for destruído por uma bomba desses malucos lá de cima. Aqui a chance de ser atingido por uma bomba deles mesmos é a mesma em qualquer lugar.

Em seguida, o tenente mandou o motorista parar o caminhão sob um conjunto de árvores grandes, na beira de um parque. E explicou:

– É só para parar de andar como uma mosca tonta, nesta escuridão iluminada por explosões e incêndios, com essa fumaça desgraçada em tudo quanto é lugar. Chega. Não pense que as árvores nos protegem, impedindo que os pilotos nos vejam. Eles não vêm nada, belga! Bombardeiam no escuro, não interessa onde as bombas deles vão cair. Destroem tudo, principalmente as casas e edifícios de apartamentos dos pobres dos civis.

– Mas eu li que existem os bombardeios de precisão e…

O Tenente Schadeck soltou uma sonora gargalhada.

– Esqueça, belga, isso é história da carochinha! Mera propaganda. Para você ter uma ideia, faz mais de ano que os ingleses bombardeiam a Krupp. E a Krupp continua funcionado do mesmo jeito. De vez em quando eles acertam um galpão, um forno, um desvio ferroviário. Aí a Krupp, com auxílio do exército e dos… bem, de vocês, os “trabalhadores voluntários da construção”, como os cretinos chamam vocês na maior cara-de-pau, reconstrói imediatamente o que havia sido destruído e tudo continua funcionando.

– Quer dizer, então…. – começou a falar Jacques.

– Quer dizer que, na verdade, as grandes vítimas dos bombardeios são sempre os civis inocentes. Tanto faz se são os britânicos e os gringos em cima da gente aqui na Alemanha, ou os alemães em cima das cidades da Inglaterra, da Polônia ou da Rússia. Dá tudo na mesma, belga.

– Mas senhor, também há uma imensa perda de equipamentos: blindados, tanques, aviões.

– De ambos os lados, belga. E aí o que acontece? Os industriais fabricam tudo de novo e ganham muito mais dinheiro. O que esses sujeitos mais querem é que tudo o que fornecem seja logo destruído. Aí entram os pedidos novos na mesma hora.

– E o enorme sacrifício de vidas, senhor? Soldados. E civis, como senhor mesmo afirma…

– Ora, rapaz, carne humana é a mercadoria mais barata desta ou de qualquer outra guerra. Por exemplo: hoje morrem dois mil civis. E daí? Os políticos e os generais fazem um discurso pomposo e esquecem o assunto. E os pilotos, então? Você tem ideia de quantos pilotos nós já perdemos nesta guerra? Pois é, muito mais do que vinte mil jovens. Vinte mil! E o que acontece? Ora, são logo substituídos por outros ainda mais jovens, mais inexperientes, que vão se deixar matar mais rápido, portanto. Se eles morreram, isso quer dizer que milhares de aviões morreram com eles.

Jacques fez que sim com a cabeça, pensou e completou:

– E esses aviões foram repostos, novos equipamentos foram fabricados, milhões de marcos, libras e dólares correram para as mãos de rapina da indústria da guerra.

– A mais cara de todas elas, meu rapaz. Você pegou a coisa muito bem, você é esperto, belga. Então me diga, qual é, ao seu ver, depois do que eu lhe disse agora, a única matéria prima que conta de verdade na guerra?

– O dinheiro, senhor. Só o dinheiro.

– Pois é. Para onde foi o dinheiro dos judeus da Alemanha, da Polônia, da Rússia?

– Da Bélgica e da França também, senhor. Foi para o esforço de guerra dos… posso dizer a palavra… nazistas, senhor?

– Para mim você pode, belga. Mas não se arrisque a comentar isto com os outros SS. A maior parte deles é constituída por fanáticos sem nenhuma cultura.

– E o senhor, tenente? Posso perguntar o que…

– Eu era professor de literatura em minha cidade, belga. Oberammergau. E também era Pôncio Pilatos. Em minha cidade faz-se a maior representação da paixão de Cristo em todo o mundo. Fui Pôncio Pilatos até três anos atrás.

– Sim senhor, eu sei. Conheço, quer dizer, já li a respeito. É impressionante. A paixão de Cristo ao ar livre, em Oberammergau. Encenada uma vez a cada 10 anos somente, com mais de 1000 pessoas atuando. Puxa, professor de literatura…

– Professor de literatura, Pôncio Pilatos, mais uma esposa e três crianças. Isso tudo é o que eu deixei para trás, belga. Minha vida e minha família. Para lutar numa guerra perdida.

– Como perdida, senhor? Por quê?

– Belga, há pouco você mesmo reconheceu. Quem ganha a guerra?

– O dinheiro, é claro. Mas…

– Sem, “mas” nenhum, meu rapaz. O dinheiro agora está vindo a rodo do outro lado do Atlântico. Os americanos descarregam milhares de aviões e blindados nas costas da Europa quase todo santo dia. Só não vê quem é cego. Há dólares americanos sem fim e os judeus de lá são riquíssimos e não foram caçados e expropriados como os daqui. Olhe para cima agora e você verá a confirmação do que estou falando. Ali estão pelo menos uns mil aviões americanos. Bombardeiros, caças-bombardeiros e caças ligeiros. Nós não temos mais homens, nem aviação ou artilharia suficientes para enfrentar tudo isso.

– Bem, senhor, isso é verdade…

– E aqui em baixo eles acabam de despejar muitas centenas de milhares de dólares em bombas. Numa só noite! E daí? Como você já sabe, eles estão rezando para que a gente destrua todos esses aviões, assim eles podem fabricar mais. E aí os Krupp do lado de lá ficam mais ricos ainda.

–  E os mortos americanos…

– Os mortos deles? Bem eles mandam uma medalha e uma bandeira para o pai e a mãe dos cowboys, que ficam emocionados e orgulhosos de poderem hastear a bandeira a meio-pau na frente da casa, para impressionar os vizinhos. E aí mandam mais um filho, que acaba de fazer 18 anos, para ser bucha de canhão na Europa ou na Ásia. Enquanto isso os generais e os senadores tomam um Bourbon juntos e assinam mais um contrato com os senhores da indústria bélica. Mais bombas, mais aviões, mais tanques, para matar aqueles malditos nazistas do bastardo do Hitler ou do Imperador do Japão.

Jacques olhou apreensivo para o motorista do caminhão, que ouvia tudo com expressão divertida. Por fim teve coragem de comentar:

– Desculpe, senhor, mas não é arriscado falar essas coisas

assim na frente de… quer dizer…

– Do Matheus? Ora, belga, se uma bomba cair agora sobre as nossas cabeças, minha Elza vai sentir duas perdas: a do seu marido Pôncio Pilatos e a do seu irmão Matheus.

– Ele é seu cunhado, então?

– Isso mesmo, rapaz – confirmou o motorista sorrindo. E eu assino embaixo tudo o que o Horst falou. Ele era Pôncio Pilatos e eu era Simão Zelotes. Tudo que eu quero, meu camarada, é voltar para Oberammergau e para as minhas aulas da faculdade.

O bombardeio começou a diminuir. Era evidente que o dano infligido aos grandes quadrimotores estava sendo muito grande. Os valentes Messerschmitt estavam se saindo bem no combate desigual contra tantos Thunderbolt, ajudados ainda por alguns caças Spitfire. Mesmo assim eles conseguiam disparar seus canhões e algumas bombas maiores sobre as fortalezas voadores, atuando como se fossem bombardeiros, quando eram apenas caças leves e em luta simultânea com outros caças dos americanos e ingleses.

A formação de aviões inimigos aos poucos foi se afastando, não sem antes fazer mais uma incursão sobre as coordenadas do complexo de fábricas da Krupp. Mas, mais uma vez, o resultado foi apenas ridículo. O ataque aliado fora executado por bombardeiros B-29, as Fortalezas Voadoras, caças Thunderbolt americanos e Spitfire britânicos. A Luftwaffe e a DCA antiaérea botaram por terra muitos desses aviões, enchendo de fato os céus de Essen de paraquedas norte-americanos. Mas a maior parte dos aviões alemães foi abatida também; contudo, quase todos os seus pilotos conseguiram se salvar, saltando de paraquedas. Só mais uma noite de guerra…

 

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