A Páscoa de Clarice (David)
A PÁSCOA DE CLARICE
Amavam o avô. Ansiavam por vê-lo. Mas, naquela Páscoa, tudo mudou. Pelo menos, para Clarice.
Chegaram ao sítio do avô na quinta-feira à noite – o pai, a mãe, Felipe e Clarice. Foram recebidos com alegria incontida. Vovô Terêncio e vovó Teza saltitavam como lebres pela casa. “Já é tarde. Todos pra cama!” – ordenou a mãe. Mas Clarice dormiu mal. Ansiava pelo novo dia. Longe da cidade, a noite falava. Grilos cricrilavam, corujas piavam, cães uivavam, paredes se mexiam. Ela revirava na cama.
Sexta-feira santa. Que monotonia. Nada acontecia. Nem podiam comer as frutas do pomar. Dia de jejum – dizia a vovó Teza, enfiada num vestido largo e escuro. Na natureza, tudo modorrava. Todo mundo falava baixo, em segredo, fala mansa, como se pisasse em ovos.
Veio o sábado. Então, tudo mudou. Sem feios, sem limites. Podia falar alto, rir, correr, cantar, gritar, espantar as vacas, galinhas, patos, cabritos, pássaros. Clarice dava graças a Deus por ter sobrevivido àquela sexta-feira.
Vovô Terêncio surgiu do estábulo com o boneco de pano, enchido com palha de arroz e serragem. Disse que era o Judas, que todos deviam bater nele sem dó. Entregou a Clarice e Felipe dois cabos de vassoura e a surra se deu, até o boneco explodir.
Isso foi pela manhã. De tarde, logo depois do almoço, novas aventuras. Andaram a cavalo, caçaram borboletas à beira do riacho, subiram em árvores à caça de ninhos de pássaros, puxaram a barba do bode velho, que pinoteou…
– Agora, chega! – ordenou vovó Teza, atarefada, lá da cozinha. – Quero os patos.
Vovô entrou no rancho e voltou, balançando na mão um machadinho que brilhava ao sol.
– Aos patos! – disse, quase gritando, o suor porejando no nariz afilado.
– Aos patos! Aos patos! – repetiram, sorrindo, seguindo atrás dele.
O curral e o galinheiro ficavam do outro lado do riacho. Elas seguiram o avô pela trilha. Um velho estábulo servia de abrigo aos patos. Durante o dia, eles circulavam no gramado e se divertiam na pequena lagoa do riacho. Gansos e patos se misturavam, nadando acima e abaixo, e só não iam mais longe por que havia uma cerca de tela. Alisavam com os bicos os peitos, indo e vindo. Formavam desenhos curiosos, circulares e às vezes piramidais. Um ganso mais audacioso se aproximou do vovô e começou a mordiscar suas botinas gastas. Vovô Terêncio o chutou de lado. Mas o ganso voltou a atacar e, desta vez, foi jogado noutra repartição, grasnando. “Arre, que bicho!”
Vovô Terêncio sacou dos bolsos do paletó surrado os grãos de milho e começou a chamá-los. Quá-quá-quá-quáááá! Os patos responderam: quá-quá-quáááá´!!!, saíram da água, batendo as asas, e vieram correndo, formando uma fila. Vovô Terêncio gingava o corpo envelhecido, balançava as mãos, jogava alguns grãos como chamarisco, e rapidamente se formou um círculo ao seu redor. Então, ele jogou mais grãos de milho e todos começaram a disputar vorazmente. Clarice e Felipe observavam o avô, curiosos, e riam do jeito desengonçado dos patos caminharem, com aqueles pés esquisitos, as asas abertas, ainda molhados. De repente, vovô Terêncio abaixou-se rapidamente e pegou dois patos, e segurou-os de cabeça para baixo. “Seus bobinhos!” – riu. “Nem sabem do que vem pela frente.” Os patos se assustaram, mas logo voltaram a disputar os grãos de milho. Vovô Terêncio abandonou o cercado e veio em direção de Felipe e Clarice. Queria que Felipe segurasse um, mas o menino sentiu medo, recuando. “Seu bobo!” – ralhou o avô. “Eles não tem dentes. Só esses dois buraquinhos nos bicos pra respirar. Quando bicam, deixam uma macha por dois ou três dias.” Então, ele amarrou com um cordão as pernas de um pato e pendurou-o na estaca da cerca, enquanto pegava o machadinho com uma das mãos. Em seguida, dirigiu-se a um toco de peroba, posicionou o pato em cima, esticando o pescoço com uma das mãos, enquanto segurava-o entre os joelhos. Levantou o machadinho, que voltou a brilhar ao sol, e zás! – a cabeça do pato voou para a frente do toco. Ah! – disse Clarice. O que acontecera? O sangue esguichou, manchando as mãos e o brim das calças do avô, vermelhando.
– Vovô! – gemeu Clarice.
Mas ele não escutou. Foi em direção do outro pato pendurado na cerca e executou-o com a mesma serenidade. Havia, agora, duas cabeças no chão ressequido, e dois pescoços esguichando sangue quente, ainda rolando, como se estrebuchassem, à procura de vida. Saracoteavam. Depois, ficaram inertes. Os cachorros queriam abocanhar as duas cabeças, mas vovô Terêncio os espantou. Clarice olhou para Felipe, à procura de socorro, mas Felipe estava pálido, sem cor, e desmaiou, despencando como um saco de batatas.
– Mas que moleirão! – ralhou o avô, erguendo-o e jogando uma caneca de água no rosto, às pressas. – Esses meninos da cidade!
Recuperado, seguiram o avô na trilha. Clarice via os pescoços dos patos pingando sangue na relva e ela, cautelosamente, procurava desviar-se das pequenas folhas ensanguentadas.
No domingo de Páscoa, a mesa farta. Desde sábado, a mãe e a avó Teza preparavam o banquete. No centro da mesa larga e comprida, os dois patos, em duas travessas, as pernas amarradas, recheados. Clarice via o avô erguendo o machadinho brilhante ao sol e decepando as cabeças deles. O avô, com uma lâmina afiada, começou a trinchá-los como um exímio açougueiro. Clarice estava afogueada, perdera o apetite, sentia uma forte dor de cabeça, e os lábios não tinham sangue.
– Na região, não há patos tão apetitosos como estes – vangloriva-se o avô, trinchando com orgulho o peito na espessura correta, preciso. – Nem parece carne de ave…