A pequena Wang Li (Milton Maciel)

A PEQUENA WANG LI  丽  

MILTON MACIEL

 

A pequena Wang Li empunhou com coragem o carrinho de mão. Pai tinha que trabalhar na lavoura de arroz. Mãe ainda tinha que ordenhar mais cabras. Mas o leite para entregar ao caminhão de Zhang Wei já estava ali no latão, quente dentro do carrinho.

Muito pesado para os seis anos de Wang Li! Muito longe para seus pezinhos, quase um quilômetro empurrando aquele tambor de leite, a roda do carro de mão chafurdando no barro do caminho, época de chuvas. E de frio, muito frio. A pequena Wang Li largou o carrinho, soprou bafo quente nas mãos duras de frio. Depois retomou a marcha, com o típico estoicismo que as crianças do campo aprendem com seus pais na China.

Com as chuvas, o caminhão de Zhang Wei só podia chegar até aquele ponto tão distante. E ninguém mais podia levar o leite de Pai e Mãe para Zhang Wei vender, só a pequena Wang Li. Consciente de sua importância no processo de ganha-pão da família, a garotinha apressou o passo e ainda conseguiu sorrir, apesar do esforço enorme que fazia. Pai ia ficar feliz com sua filha!

Foi quando passou pela beira do pequeno lago que viu a libélula. O animalzinho se debatia dentro d’água, batia as asas e as patinhas, de borco sobre a superfície. O coração de Wang Li apertou. A libélula parecia estar muito cansada. Ia morrer. Que dó! Tão bonita…

Não, o pequeno inseto não ia morrer! Não enquanto ela, Wang Li, estivesse ali. Apanhou um graveto, o maior que encontrou por perto, e se aproximou da água. Não, muito longe! A distância era três vezes maior que a altura dela. Já contando o graveto.

Então ela viu o pedaço de tronco boiando ali na beira. Wang Li não sabia nadar. Colocou os pés na água e ela estava gelo puro. Mas Wang Li achou que aprenderia a boiar com o pedaço de tronco. O lago era fundo. Mãe sempre dizia para ela ficar longe da beira. Mas agora ela não podia obedecer Mãe. O animalzinho ia morrer. E, assim como só ela podia levar o leite para Zhang Wei, só ela podia salvar a libélula agora.

E a pequena Wang Li entrou resoluta na água gelada. Perdeu o fôlego, se assustou porque afundava, mas agarrou-se com força no tronco que boiava. O tronco não afundou. Wang Li era muito pequena e muito magra, o tronco nem se deu conta que ela estava agarrada nele. E ela, intuitivamente, começou a mover suas pernas e o braço livre, precisava chegar na libélula antes que ela desistisse de viver.

Mas Wang Li não tinha muita força nas pernas e nos braços. E não sabia o que fazer com eles, por isso demorou muito tempo até conseguir chegar aonde estava o inseto. A pequena Wang Li não tinha força, mas era muito forte. Sua vontade era uma só e isso a fazia lutar sem parar: ela ia salvar a libélula!

E conseguiu chegar até ela, com o corpo todo quase congelando. Ela sentia muito frio, seus dentinhos batiam. Mas ela sabia que a libélula também sentia muito frio. E que a libélula só podia contar com Wang Li.

Os lábios roxos se abriram num sorriso, a mão direita mergulhou por baixo da libélula e a ergueu triunfante. Levou a mão perto da boca e começou a soprar bafo quente no bichinho. E a libélula começou a dar sinais que reagia, começou a mover suas asinhas com mais intensidade.

Wang Li pousou o inseto no tronco e começou a duríssima jornada de volta à margem. Não sentia mais as pontas do pés, as mãos estavam duras, o corpo todo tremia. E ainda tinha que cuidar para que o tronco não girasse, para não levar a libélula para a água de novo.

Quanto tempo ela persistiu no seu esforço sobre-humano, a pequena Wang Li não podia saber. Mas Wang Li era uma lutadora.

Então ela e sua libélula chegaram à margem. E saíram as duas da água! Ficaram ambas sobre a relva, exaustas, enregeladas, o tímido sol que ameaçava sair não as podia aquecer.

Foi quando a pequena Wang Li ouviu o barulho do caminhão de Zhang Wei, lá longe na estrada. O caminhão parou, esperou um minuto e foi embora!

Não, Pai não ia ficar contente com sua filha. A pequena Wang Li tinha fracassado! O leite estava perdido, Zhang Wei só passaria ali depois de dois dias. Os lábios roxos da menina se abriram para deixar sair muitos soluços. Wang Li chorava. Pai ia ficar triste. Mãe ia ficar brava. Wang Li merecia castigo. Ficou com medo. Mãe ia castigar Wang Li, bater com vara. Se pudesse, não voltaria mais para casa.

Mas não podia. Tinha que voltar e contar a verdade. Suportar o castigo. Que Mãe batesse não importava tanto. Que Pai ficasse triste por causa do leite perdido, por causa do dinheiro que ia faltar… isso deixava Wang Li desesperada.

Colheu a libélula outra vez na mão direita, encobriu-a com a esquerda, fez uma concha, voltou a soprar bafo quente nela. Achou que ao menos a libélula devia estar contente. Wang Li ficaria muito contente também, se não tivesse que voltar para casa levando a terrível notícia.

Fez um esforço inacreditável, ergueu-se do chão. Então lembrou que o leite no latão ainda devia estar um pouco quente, saia fumegante das tetas das cabras.

Tentou tirar a tampa do latão com enorme dificuldade, muito dura para a pequena Wang Li. Mas ela não desistia nunca e acabou conseguindo girar a grande tampa. Um vapor fumegante saiu de dentro do latão.

Wang Li mergulhou ali suas duas mãozinhas enregeladas e sentiu o calor maravilhoso a lhe devolver os movimentos. Depois fez concha com as mãos e começou a beber o leite morno. Achou que isso lhe daria mais forças.

Abaixou-se, apanhou a libélula que ainda não tinha forças para voar e afastou-a do carrinho mais um pouco. Não queria molhá-la. Então voltou ao latão e começou a tirar com as mãos em concha o leite morno e a jogar sobre seu corpo gelado e sobre seus pés endurecidos. Ah, que sensação maravilhosa!

Quando achou que havia esvaziado muito mais da metade do latão, experimentou erguê-lo. Não tinha força para isso; mas tinha que ter… E conseguiu! E, então, começou a verter vagarosamente o resto do conteúdo do latão sobre seu pequeno corpo sofrido, a começar pelo alto da cabeça.

Minutos depois, a pequena Wang Li caminhava vagarosamente empurrando o carrinho de mão. Agora estava leve, todo o leite tinha sido derramado!

Toda molhada, suja de barro e leite da cabeça aos pés, o cabelinho liso de leite empastado, os pezinhos nus sem os chinelos perdidos no lago, a pequena Wang Li chegou em casa. Chorava muito.

Mãe a viu primeiro. Entendeu que o leite havia caído do carrinho de mão, que a filha havia feito algo muito errado. Mãe começou a gritar com a pequena Wang Li, que chorou ainda mais.

Mãe pegou a fina vara de bater, a garotinha tremeu ainda mais.

Mas Pai chegou por causa dos gritos. Mandou Mãe parar. O que tinha acontecido?

A pequena Wang Li contou a verdade. Mãe tinha lhe ensinado que não se deve mentir, mesmo quando a gente fica com medo. Então Wang Li não mentiu. Mostrou o monte de folhas que havia juntado no carrinho, ali dentro delas a libélula estava protegida, ainda não queria voar.

Mãe ficou mais furiosa ainda. Filha desobediente, tinha entrado no lago perigoso! E tinha perdido todo o leite por causa de um mísero inseto. Pegou de novo a fina vara de surrar.

Pai arrancou a vara da mão de Mãe. Quebrou a vara. Abraçou a pequena Wang Li. Pai tinha lágrimas nos olhos. Sua filha podia ter morrido, isso deixava-o agoniado. Mas sua filha tinha feito tudo aquilo para poder salvar uma vida, a vida de um serzinho indefeso que sofria e ia morrer. Isso o deixava emocionado. E orgulhoso, muito orgulhoso.

Sua pequena Wang Li era uma mulher de coragem e de compaixão! E de grande inteligência também. Pai mandou Mãe aquecer um monte de água, sua Wang Li agora ia ficar por muito tempo dentro da água morna, se limpar, se aquecer, parar de tremer para não ficar doente.

Mãe compreendeu que estava errada. Pela primeira vez na vida pediu perdão à pequena Wang Li. Correu para juntar a água e a lenha, ia ferver muitas panelas para sua filha. Pai pegou Wang Li no colo, pegou coberta, envolveu a menina colada nele, aqueceu-a com seu próprio calor, beijava-lhe os cabelos sujos de leite.

Wang Li estava feliz: Pai não estava triste! Pai não se importara com o leite perdido. Pai não deixara Mãe castigar Wang Li. Pai protegia e aquecia sua filha. Pai bom, Wang Li gostava muito de Pai. De Mãe também. Menos, porque Mãe muito gritona e nervosa.

Mãe batia muito em Wang Li.

Mas Mãe veio e tirou Wang Li do colo de Pai. Levou-a para a grande tina de água quentinha. E lavou-a cuidadosamente. E desenredou seus longos cabelos negros e lisos. E abraçou sua filha, porque sabia agora que ela podia ter morrido no lago, afogada ou por causa da água gelada.

Mãe agradeceu em sua mente que Pai tivesse quebrado a vara. Não, sua Wang Li não merecia apanhar! Nem agora, nem nunca mais. Mãe tinha apanhado muito, muito, na infância, achava que era assim que se educava filha. Mas o sorriso surpreso de Wang Li, ali dentro da tina de água quente, lhe dizia que estivera errada. Ainda era tempo, tudo haveria de corrigir dentro de si mesma. Pai era um homem bom. Carinhoso, como mãe dele. Ela, Mãe, não sabia dar carinho, não tinha aprendido. Mas não ia mais ser bruta com sua menina.

Nesse momento, enquanto Mãe abraçava o corpinho de Wang Li dentro da tina, algo entrou pela fresta da janela.

Era a libélula, que tinha voado enfim. E voou ao encontro de sua salvadora. Pousou na beira da tina, depois no braço da menina. Ficou ali muito tempo, mexendo as asas lenta e ritmadamente.

E, enquanto duraram seus curtos dias de inseto, a libélula nunca mais se afastou daquela casa. Nunca mais se afastou de Wang Li.

 

COMPARTILHE: