A saudade que habita em nós (Paulo Roberto da Silva)
A saudade que habita em nós
Paulo Roberto da Silva
O festejado roteirista norte-americano John Hughes, falecido precocemente, escreveu que se pode ser velho para muitas coisas, menos para se ter medo. Eu acrescentaria ao “medo” a “saudade”: não importa a idade, sempre é possível sentir saudade… de uma pessoa, um momento, um lugar, um animal, e até de um objeto.
Dia desses acordei com uma música martelando na memória. Sabia ser de um filme, mas… qual deles? Restaram 3 opções e me prendi a uma delas: foi um tiro certeiro. É o tema do filme “Um Dia” (“One Day”: um raro caso em que a tradução foi fiel ao título original). A música e o filme a que se refere são daqueles que, apesar de muito bonitos, são muito tristes. Sim, é possível existir beleza até na tristeza.
Mas músicas assim nos remetem a lembranças, e dessas surge a saudade. O consolo é que só se sente saudade do que ou de quem foi bom, do contrário seríamos masoquistas, sentindo falta do que ou de quem nos fez mal.
No entanto, esse sentimento bom também nos consome às vezes. Porque sentir saudade é quase uma marca registrada de muitos de nós, minha inclusive, ocupando boa parte do nosso tempo, da nossa atenção e, como bem se sabe, todo o excesso é prejudicial. Difícil ou impossível, no entanto, deixar de sentir saudade dos pais e avós que já se foram, dos tios e tias (e, no meu caso, todos também já partiram), dos meus três primos que recentemente nos deixaram (dois deles num mesmo ano). Saudades da infância e dos lugares em que moramos ou visitamos, dos colegas e das brincadeiras de infância, dos vizinhos de várias épocas, das festas, dos risos, dos abraços, das refeições gostosas em família e dos pratos que só nossas avós e mães sabiam fazer, das histórias passadas de geração a geração, do aconchego de estar junto às nossas mães e da segurança transmitida pelos nossos pais, das salas de aula e dos professores (não de todos, confesso). Saudades da cidade em que nasci e que, hoje, transformou-se num ser quase que estranho e disforme, se comparada com o que já foi um dia: cruzo com pessoas que nunca vi e talvez jamais encontre novamente, ruas que perderam o significado que um dia tiveram tamanha a descaracterização, praças que deixaram de ser jardins para se tornarem frios calçadões, construções que desapareceram como num sopro. Símbolos de um tempo que alguns tentam apagar, mas que nossa mente insiste em guardar…
Numa tarde de maio do ano passado, na penúltima sexta-feira daquele mês, percorrendo o centro da cidade, pude ver mais de perto essa Joinville tão estranha, tão modificada. Mas também, por outro lado, consegui senti-la como um grande ser vivo, que cresce, se modifica, adota novos hábitos, cria novos laços. Examinando-a de perto, aliás, com calma, livre de sentimentos extremos, pude perceber que, apesar de tudo, algo da Joinville que conheci continua existindo. Ela ainda está lá, diferente assim como nós também, mas é a cidade que me viu nascer e que serviu de cenário ou palco para boa parte das memórias das quais sinto saudade… Passei pela maternidade onde vim ao mundo (na época apenas a “Casa de Saúde Dona Helena” e, hoje, uma gigantesca instituição hospitalar), a Igreja da Paz onde fui batizado e confirmado, os meus primeiros colégios (Santos Anjos e Bom Jesus), tudo isso, enfim, ainda está lá e continuará existindo. E a cada vez que simplesmente passar por eles, uma plêiade de lembranças, de fatos e nomes, virá junto.
Novas pessoas e acontecimentos surgem a cada dia. É um doce consolo, uma gostosa compensação, para suprir a ausência de tudo o que partiu ou que ficou para trás. É justo dizer que, por vezes, o novo tem o poder de substituir com folga aquilo ou aqueles que não estão mais aqui. Mas talvez o mais correto seria dizer que todos, os de ontem, os de hoje e os de amanhã, são apenas parte de um todo homogêneo, que não pode ser partido ou dividido sem que se perca a essência e a continuidade daquilo que chamamos de “vida”. Somos parte desse emaranhado que vem e volta, surge e some, nasce e morre, numa sucessão sem fim que nunca para de nos surpreender. Mas a saudade, ahhh… essa saudade, quando insiste em bater à porta, muitas vezes nos derruba…