A solidão criativa (Apolinário)
A solidão criativa
O mundo encolheu e está em todo lugar. Lembra o ‘Tudo em todo lugar ao mesmo tempo’, pelo que sei um filme de quinta, recebido, contudo, por alguns críticos, como ícone que deve refundar a história do cinema. Em nossa época de extremos, é natural que os produtores da sétima arte estejam conectados com a linguagem rasteira e burra do Tiktok, o mais novo mecanismo de alimentar de ópio as redes sociais.
Pensar tem sido uma atividade de reduzida presença entre os dotados de consciência e razão. Na antiguidade, os que pensavam ficaram conhecidos como filósofos e existiam positivistas, negativistas e sofistas. Os sofistas eram demagogos e tinham grande audiência, como agora os ‘influenciadores’ e ‘treinadores’. Estão por aí distribuindo conselhos, opiniões e arrecadando moedas. Dispõem de milhares de seguidores, quase todos candidatos à reprovação e à desolação em tempo mínimo. Aprendizes da frustração pessoal e da vida em ‘realidade aumentada’.
Vivemos a era do ‘Tudo em todo lugar ao mesmo tempo’. Enfim, um tempo em que muitos acabam escravos da novidade a qualquer preço, em todo lugar e ao mesmo tempo. A angústia, depressão e isolamento que padecem milhões de pessoas em razão da comunicação online, estão produzindo uma geração de alucinados, descontentes com a vida o tempo todo e em qualquer lugar. É assim e tudo isso, dizem, é apenas começo. Vem aí a inteligência artificial, aquela que substituirá o cérebro humano em mais alguns anos. Pode ser assustador, mesmo que tenhamos em conta que nem tudo é o que parece. Mesmo assim, a inteligência artificial deve produzir um novo admirável mundo.
Inquietante é perguntar se teremos neste futuro imediato os tais pensadores, os filósofos de todas as eras. Pensar exige recolhimento, distanciamento, ócio e tempo. São condições cada vez mais inexistentes no modo de viver no século 21 em qualquer lugar e a qualquer tempo. Se cérebros forem acomodados a pensar menos, é natural que humanos ficarão menos humanos. O uso da própria cabeça poderá ser apanágio apenas dos virtuosos e beatificados, num mundo cada vez mais quântico e digital. O computador quântico, aliás, está na ordem do dia e nascerá, imenso e incontrolável, irmão gêmeo da inteligência artificial.
Num mundo assim, fascinantemente próximo, a solidão criativa que inspira o homo sapiens há pouco mais de 500 mil anos, tende a desaparecer. Sim, os otimistas sempre poderão dizer que a máquina poderá propor novos desafios ao cérebro de todos nós. Sim, pode, mas permanece a dúvida se teremos a capacidade de controlar os mecanismos quânticos que estão a caminho. Deve-se ensinar as crianças o que é filosofia e como é importante cuidar da própria mente. De preferência cultivando o estranho habito de ficar sozinho e pensar com a própria cabeça.
Apolinário Ternes (aternes@terra.com.br)