A ti, que me lês (Joel Gehlen)
A ti, que me lês
Ainda não é a crônica, e sim essa torrente de imagens desconexas que doem como a surra do mar salgado sobre o rochedo indócil. É a mesma dor de quando duas mãos desconhecidas se achegam de mansinho e se interpenetram os dedos que ainda não sabem, mas, quiçá, se queiram mutuamente pegados pelo tempo que durar a vida. Ainda não é a crônica, mas essa massa, mais sentida que pensada, que nos chega assim que irrompe a claridade mal amanhecida. E requisita o corpo para carregá-la, precisa de ombros e punhos dedicados para suster sua forma intangível e subdimensionada.
Nada é mais incerto, escorregadio e enganoso que as palavras. Mas antes de grassarem no terreno pantanoso das bocas, as palavras voluteiam voláteis e descabidas à espera de um milagre, indiferentes se escritas ou contadas. Desacomodadas na jaula da cabeça, formas ainda fetais inquietam-se como um espírito gasoso que se quer apreendido antes que desapareça. Esperam mais que esperançam – as palavras – e têm fé, mesmo que descreiam. Ainda não é a crônica, mas se o relvado desse texto é tocado pela graça de olhos leitores, então há de surgir ungida sob dois sóis. Muito mais que a formulação pronunciada, o que dá alma à palavra é ser lida e ouvida. Escrever é menos que a metade. A parte que importa nesse mistério, a chama que arde, a chave que abre, é sempre de quem lê. A escrita é uma porta ornada em entalhes: por mais bela, nada revela se alguém não lhe abre as pálpebras para que seja desdobrada, sílaba a sílaba, na lida da leitura.
Não sei se flor ou se água, essa forma que fere bruta e delicada e brota à força de lava. Esse fluir que afaga, preciso e desmedido, feito a eternidade do instante em que tudo de si caiba no precário instante por haver sempre na beleza sua serva mais dedicada. Da primeira vez que reli essas linhas deitadas em letras de fôrma, ainda não eram a crônica, mas seu anseio. A língua cresce quando o olho míngua, exausto de percorrer as linhas, feito um equilibrista sobre o abismo, por isso dedico-lhe, leitor, esse texto, que só tem de seu o sentido que lhe atribuis. É teu qualquer mérito que houver, e se algo lhe acrescenta a leitura, só me enriqueces com aquilo que ganhas.
Joel Gehlen, crônica quintaferina, AN 26 de janeiro de 2017