A triste sina de Altamiro
Altamiro era pacato. Também pudera, criado nas lides do fumo, lá nos cafundós de São João Batista. Na realidade era de Tijipió, mas tinha vergonha de dizer. Se bem que pacatez não era desculpa, tinha irmãos bem desenxabidos. Não havia o que explicar, ele era assim e pronto. Mas era trabalhador.
O certo é que na tarde mourejante de forte sol ouviu o alto-falante da Kombi da Tupy ofertando vagas naquelas bandas, “Joinville deve ser linda”, pensou e decidiu-se. “Vou trabalhar na Tupy”, falou no acender do lampião, sentando à mesa na espera da sopa e pão. Olharam-no, como se estranho fosse, os demais 11 irmãos. “Você nem o mais velho é” falou a ternura na voz de mãe, prenunciando a perda. “Deixa o rapaz, a vida ensina”, predisse, na voz grossa, o pai, arrematando, “saiu daquela porta só entra como visita”.
Assim Altamiro, de parca bagagem e quase dezoito, largou-se pela estrada poeirenta, deixando a perplexidade nos olhos dos irmãos sem coragem para tanto. Nos pais calejados incutiu a dor da perda. Abrigou-se no começo do Boa Vista, na pensão da Dona Juveci, oriunda também daquelas bandas. Só de conhecidos, ela mais o marido Varte, fundaram um quase cortiço.
Quase fazia nada, trabalhava e dormia. Nas missas de padre Felício, em domingos de ócio, comungava vestindo macacão azul, clarinho e luzidio. Roupas outras não tinha, o macacão era melhor que as roupas rasgadas do tempo da roça. E depois de quarado no sol e lavado com pedra de sabão de cinza ficava tinindo, ainda mais se passado no ferro à brasa.
Domingo não era domingo se não tivesse maionese. Isso Dona Juveci fazia questão. Às vezes tinha até gasosa, que fazia bolhinhas quando se abria a chapinha. Depois, no mormaço das tardes, assistia, na única televisão da rua, o moço Silvio Santos, engraçado com seu cabelo de brilhantina. Às vezes, à noitinha, juntava moleques para assistir Chacrinha ou A Praça da Alegria. Isso quando o seu Varte não aparecia bêbado, colocando todo mundo para correr.
Na segunda, às quatro e meia, pedalava sua rotina rumo à Tupy, com o macacão ainda brilhando. Voltava no anoitecer, caprichava nas horas extras. O luzidio da roupa durava pouco, trabalhava na macharia, o óleo espirrava, pretejando o azul da roupa e a tez do rosto. O macacão só ia ver água no próximo sábado.
Não via mulher, tinha vergonha. Provável que era casto. Se falassem intimidades, corava qual camarão na brasa. Mas era homem, não tinha trejeitos. Discreto, ninguém sabia se guardava dinheiro ou se levava para casa, nas férias únicas do ano. Com certo orgulho confirmava seus quase dez anos de empresa, quando ganharia relógio de pulso, prêmio de dedicação.
Por essa época algo diferente rebuliçou a rua, tumultuando a placidez. A mulher do Coceira, mais duas filhas, fundaram uma zona ali perto. Isso mesmo, casa de baixo meretrício. O Coceira, baixinho e manco, viu-se escorraçado com os filhos menores. A mulher com as duas filhas passaram a receber clientes na casa pintada de nova, na rua da prainha. Alzira, a mais velha, podia se dizer bonita. E, na família de mulatos, era a única de pele inexplicavelmente clara.
A casa prosperou, grande parte dos salários dos arredores, a maioria oriundos da Tupy, eram canalizados para amainar os desejos não confessados de maridos escondidos. Dia dez, quando saía o pagamento, a casa lotava. Quase não tinha lugar para encostar as bicicletas.
Num começo de noite, desses que a memória não guarda data, Altamiro demorou-se. O pirão com sardinha, reservado para a janta, esfriou no canto do fogão a lenha. Dona Juveci, qual galinha choca, aguardou na preocupação. Altamiro só chegou depois das dez. Ao olhar inquiridor baixou o seu. Mas com meio sorriso nos lábios. Nada disse, nada lhe foi perguntado dos atrasos dos dias que sucederam.
Em menos de mês Altamiro trouxe Alzira para compartilhar a solidão. Deu quiproquó, Dona Juveci não aceitou a quenga, digo, a moça. Altamiro não fez por menos, aboletou as trouxas na bicicleta, com Alzira na garupa, sumiu na noite. Antes pagou o aluguel, mês cheio, que Dona Juveci de boba tinha nada.
Poucos dias e todos sabiam que Altamiro comprara a casa do seu Dezassete, que pequena ficara para o aumentativo de filhos. Por isso o tinham apelidado assim. Nos domingos pós-missa, assistida envergando o novo relógio da Tupy, Altamiro pintou casa, fez horta e criou galinhas poucas. Dava gosto o capricho na casa nova que até televisão tinha. E vitrola também, onde Lindomar Castilhos cantava “Entre tapas e beijos”. Para Altamiro o céu que padre Felício pregava era seu ninho, de onde negaceava sair para trabalhar, após beijos e cafunés de Alzira.
Numa certa segunda-feira Altamiro acordou mal. Talvez a carne de porco, talvez a batida de maracujá, alguma coisa estrebuchou seu bucho. Quase não dormiu nas ânsias, recusou café e chamegos e saiu trôpego na manhã fria de frio suor. Tentou trabalhar, mas no avançar da manhã a vista turvou e estatelou-se na vertigem. O médico deu atestado, lançando os primeiros garranchos na ficha até então imaculada. A contragosto voltou para casa.
Era estranho, pessoas estranhas em horário estranho, na rua Albano Schmidt, que agora curvejava estranha. Chegou e viu a bicicleta encostada na cerca. Pé ante pé, deu com os bofes em Alzira mais Zé das Cobras, marido de Cunegundes. O dito, que morava atrás da venda do seu Jomaia, pulou a janela e chispou morrinho abaixo.
Tresvariado, Altamiro valeu-se da cinta de couro cru e sovou Alzira, marcando suas pernas nuas com a vermelhidão da vergonha. Expulsa de casa, viu-se abrigada no prostíbulo da mãe, enquanto Altamiro entranhou-se na solidão. Tentava evadir-se da chacota, que a essas alturas colocara a circunvizinhança em polvorosa. Quiçá por conta disso, a procura por Alzira avolumou-se, a ponto da mãe leiloar melhor preço.
Altamiro amuou-se, calado a contemplar suas tralhas, agora pouco cuidadas. Passados meses, num final dessas tardes em que a saudade dói mais forte, Alzira adentra à casa, pasmando o estupefato Altamiro. “Vim te ver”, sorriu ela no oferecimento de abraço. Ele, dissipando o estupor, a tomou nos braços e, no frêmito que percorreu a pele faminta, a possuiu. “Estou prenhe de ti”, revelou, jogando propositadamente o cabelo para trás. “Volta pra casa”, suplicou ele na ingenuidade da criança que ainda era.
Dormiram afeiçoados, despertados pela mãe de Alzira em brados. “Tem cliente pra ti”. Ao saber do reatamento, deu de dedo em Altamiro: “Tu nunca mais levante a mão pra ela”. O céu desceu, transformando a casa em paraíso. Ele, descartando recomendações de amigos, viu o filho nascer com cara do Zé das Cobras.
Já quase ano o menino tinha quando Altamiro recebeu telegrama, o pai se finara. No pedalar para casa ansiou chorar. “Homem não chora”, pensou no encostar da bicicleta. Tomou susto. Alzira, em risadas, montava Tonhão, dono da padaria. Atônito, Altamiro o viu passar por baixo de suas pernas, com as calças na mão, ganhando a rua. Puxou da cinta, mas pressentiu o dedo em riste da mãe dela. Desabou sobre a cama a chorar qual petiz perdido. Nua ainda, ela alisava seus cabelos. “Só amo você”, doceava na voz de sereia, “ele apenas traz pão”. Saindo da letargia ele pespegou-lhe um tabefe. Alzira tomou a mão que lhe ferira e a conduziu ao seio. “Você é meu homem”. A ternura do gesto e o entremear da mão pelas carnes atiçou-o. Ofertando o paraíso, ela conduziu-o ao céu, facultando-lhe o ventre de prazeres em veladas promessas. Loucamente amaram-se, enquanto a vitrola espinafrava: “Entre tapas e beijos / é ódio, é desejo / é sonho, é ternura…”
Voltando do enterro do pai, Altamiro ouviu confidência: “Estou de barriga”. Fitou-a de olhar triste, mas o sorriso de dentes alvos amainou o pesar da dúvida: “É teu”. Mas o menino nasceu com cara de Tonhão.
Passaram dias e Altamiro trouxe a mãe para morar junto, em casinha de fundos. Por respeito, já que o lar é sagrado, Alzira passou a trabalhar no puteiro da mãe. Ele sempre foi diligente com os cinco filhos, apesar do “nenhum puxou o pai”. Ao pé da vitrola, Altamiro reconforta-se na música que mais gosta: “E assim vou vivendo / sofrendo e querendo / esse amor doentio”.