A volta da filha (Hilton Görresen)
A VOLTA DA FILHA
Hilton Görresen
Irina voltou amarrada em mistério. O que fez, por onde andou nesses cinco ou seis anos de ausência? Veio amadurecida, com o rosto marcado por traços amargos, de uma vivência que estava acima de nosso modo simples de vida. O pai relutou em abraçá-la. Foi preciso a mãe ir procurá-lo lá fora, no quintal: “venha, velho teimoso, é sua filha”. Entrou em casa negaceando, arrastando as pernas já fracas. As mãos trementes. Concedeu um abraço duro, desconfiado. Mas Irina o estreitou de modo ardoroso, peito com peito, derramando lágrimas em seu ombro.
Lembrava-me de seus olhos escuros e tristes, suas roupas muito curtas, que o pai excomungava. O pai era das antigas, do tempo em que mulheres usavam vestidos abaixo do joelho. Mas não foi esse o motivo da briga que a fez abandonar a casa, jovem ainda, desprotegida como um pinto recém-nascido, mas com grande determinação, os olhos refulgindo ódio.
Foi a surra que levou do pai. O velho, com a lanterna nas mãos, foi descobri-la no quintal, detrás do pé de carambola, a saia erguida, em beijos e outras safadezas com um moço desconhecido. Suas coxas morenas brilhavam sob a luz da lanterna, os seios, pequenos e roliços, se despejando para fora do vestido. O moço, apavorado, se escafedeu pulando a cerquinha. Irina não pode escapar da justiça do pai, que a arrastou pela roupa até em casa, seus pés escavando o chão de terra como um arado. Trancou-a no quarto e vapt-vapt com o cinturão de couro. A mãe parecia morrer a cada grito da filha. Depois o velho saiu do quarto, teso, e foi pendurar o cinturão num prego na parede. Irina, ainda ferida, o corpo cheio de manchas roxas, correu para seu quarto, repelindo as atenções da mãe, embrulhou algumas roupas numa trouxa e saiu sem olhar para trás. Ao passar a porta, deixou uma cuspida no chão. Nunca mais soubemos dela, nenhuma carta para a mãe.
Por que voltou? Que sentimentos haviam lhe afrouxado o ódio, ou que necessidade havia provocado sua fuga da realidade que habitava? Será que conseguira perdoar o pai? Ninguém lhe perguntou nada. O velho, depois de superada a atrapalhação do encontro, enveredou pelos fundinhos da alma cansada, de onde desenraizou aquela raiva antiga e resolveu que iria acatá-la.
No quarto, abriu sua enorme mala com rodinhas e foi tirando coisas. Presenteou-me com uma camiseta estampada com frases em inglês. Vestimenta de jovens de cidade grande. Para a mãe deu um colarzinho de contas. A mãe ficou tão feliz com o presente, que até parecia haver ganhado um colar de pérolas. Mas acho que a sua alegria era mesmo pela volta da filha. Até o pai recebeu presente: um relógio digital.
Estava bonita, olhos pintados, uma boca larga e polpuda, que não me lembrava se era assim. Belos seios, como entalhados por um escultor, presos no decote como duas rãzinhas querendo saltar. As unhas compridíssimas, vermelhas. O pai certamente recolheu dentro de si seu descontentamento, com temor agora da mana, que ressumava um poder que a gente entrevia em seu comportamento desenvolto.
Determinada como sempre, assumiu algumas despesas da casa. Agora comíamos um bom queijo mineiro, tínhamos pêssego em calda de sobremesa. Parecia estar com a bolsa cheia. Só não passava perto do pé de carambola: lembranças boas ou más? Do primeiro sexo ou da brutalidade do pai?
Trazia fechada a porta de seu quarto, mas um dia em que a percebi aberta, tive curiosidade em ver as coisas bonitas que guardava na mala. Roupas coloridas, passadas e dobradas, calcinhas minúsculas e cheirosas, vidro de perfume. Num cantinho, meio escondido, um papel dobrado. Era um documento da Secretaria da Saúde, mas não trazia seu nome, e sim de uma tal Melissa. Quem seria? Uma amiga, talvez. Não, não lhe perguntei, tinha o direito de ter seus segredos.
Essa irmã, para mim, trazia um mundo novo, moderno em relação ao fundão em que vivíamos, até novas palavras entraram em meu vocabulário, algumas estranhas ou complicadas. Novas palavras aprendidas significavam um alargamento do meu mundo. Um dia você terá que sair daqui, Nequinho, ela dizia, deixar esse mundo tacanho (aí uma nova palavra), tem de estar preparado. O mundo pode ser cruel.
Saía de casa alegre, renovada, buscava as velhas amizades. Sentava-se displicente nas mesas dos botecos, pernas cruzadas, puxava um cigarro do maço, copo de uísque ao lado. Fazia selfies com os polpudos lábios entreabertos. E às vezes botava pra fora sua dança, a gingar enlouquecida, olhos cerrados, como se aquilo viesse de um mundo só seu, cheio de dores e mistérios.
De olho em seus gestos e meneios, seu corpo excitante, eu não a via como irmã. Irina era outra. Eu também, por dentro, me sentia outro. Tinha sonhos, devaneios. Minha imaginação construía imagens que atiçavam o corpo. Estava na idade perigosa, dizia a mãe. Era a figura de seu corpo que se inseria em meu pensamento quando me trancava no quarto para atender às necessidades da adolescência. Queria e não queria que ela aqui permanecesse. Havia um marco, como um risco escavado no chão, que não podia ultrapassar. Rezava pedindo a Deus que não a deixasse criar raízes em meus pensamentos. O que fazer?
Um dia, parou em nossa porta um carro de luxo, não sei a marca, não entendo de carros. O motorista buzinou com insistência e perguntou pela mana. Fui chamá-la, orgulhoso de que ela tinha conhecidos de tal envergadura. Um belo carro, de gente endinheirada. Ela não ficou surpresa, veio com uma contorção de desagrado no rosto. Quando parou na porta, o homem desceu do carro. Estava de calça jeans e uma camiseta estampada do jeito da minha, óculos de sol sobre a testa.
Ficaram falando por uma meia hora, ele parecia insistente, ela meneava a cabeça de forma negativa, tinha os braços cruzados, num aperto, como se formassem uma barreira contra o homem. Uma hora ele a segurou pelo braço e suas feições se tornaram tensas, a boca parecia expulsar palavras duras.
Então Irina entrou em casa, foi direto ao quarto. Em alguns minutos saiu dali vestida de calça e blusa, cabelos apanhados para trás, empurrando sua grande mala de rodinhas. Me deu um beijo, disse “cuide da mãe e do pai”, e entrou no carro. Parecia hesitante, como gado sendo tangido. O carro acelerou, com tremendo ronco, e se afastou largando poeira.
Foi aí que veio vindo, de dentro de mim, uma dor incontida, como se fosse me espremendo o coração, e foi se espalhando pelo meu corpo, turvando os olhos, amolecendo as pernas; sentimento de perda de alguma coisa que não cheguei a possuir. E era pra vida toda.
